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2018
Conversa com Vivian Caccuri
Por
Luis Camillo Osorio

Vivian, acho que seria bom começarmos pela sua formação. Ela partiu da música ou das artes visuais? Ou de outro lugar? E como foi se constituindo esta intersecção tão intensa entre os campos do som e da visualidade?

Essas duas expressões vieram muito cedo na minha vida já que tenho muitos músicos na minha família. Minha avó é pianista, meu avô era percussionista e aficionado por áudio e meu tio tinha uma banda de reggae e isso já me garantiu um ambiente mais multicultural. Eu tinha um lado também mais recluso e estudioso, desenhava obsessivamente, inventava instalações em casa e no colégio com coisas que achava. Então desde criança gostava de discos, rádio, gravar fitas, e na adolescência quando tive acesso à internet passava noites em claro no Napster, Soulseek e Audiogalaxy baixando música eletrônica, drum’n’bass, dub, mas ouvi também muito rock, noise. Foi natural durante a faculdade de Artes Plásticas que eu me direcionasse para um lado mais performativo e sonoro, também porque eu tinha muita troca com os músicos que estudavam as matérias de Filosofia junto comigo. Era uma bagunça. A intersecção existe por uma questão de natureza mesmo, estou sempre ouvindo, tocando vários instrumentos, compondo, dançando, acompanhando cenas, não tem como não ser isso nos trabalhos pois eu vivo isso no dia-a-dia.

“O que faço é música” foi a publicação que resultou de sua pesquisa de mestrado feita entre a UFRJ e Princeton. Infelizmente ainda não li – quero muito fazê-lo em breve – mas nela você discute a história deste diálogo entre a arte brasileira e a música. Os artistas indo operar com o vinil – como nos casos do Cildo e do Waltércio – e mais efetivamente com a escultura sonora, como é o caso do Chelpa. Como foi este estudo e como ele te ajudou a se situar neste espaço de convergência sônico-visual?

Essa pesquisa teve várias compreensões diferentes sobre o vinil que gostei muito de trabalhar. Além de mergulhar mais no trabalho desses artistas e história da arte brasileira, pude entender melhor como tudo começou no mundo da música também: como o disco chegou aqui, como a indústria se estruturou, como ela se tornou rentável, quem eram as pessoas por trás dos sucessos e fracassos, etc. Fiquei obcecada com a história do Frederich Figner, a pessoa que de fato trouxe o primeiro fonógrafo para o Brasil e que fundou a Odeon, nossa primeira gravadora. É uma história que mistura coragem, mágica, dinheiro, espiritismo, viagens na Amazônia, esperteza, uma narrativa quase difícil de acreditar que deu certo. Um aspecto super interessante também é o dado técnico da produção dos discos desses artistas. É muito bom pensar em como eles tiveram que “perturbar” uma fábrica inteira pra fazer discos fora do padrão e como que essas fábricas e engenheiros toparam esses projetos malucos. O Brasil realmente conseguiu surpreender nos anos 70 e 80, porque ainda existia algum espaço para a experimentação no rádio, na TV, no estúdio fonográfico.

Mas não sei exatamente como essa pesquisa me ajudou a me situar como artista ou como alguma outra coisa… foi muito difícil a escrita, porque não é o meu impulso criativo principal, apesar de gostar de pesquisar e escrever. Mas o mestrado também me ajudaria a me estruturar e conseguir mais oportunidades de sustento sem ter que topar trabalhos que não tinham nenhuma relação com o que eu me interessava. Mas o esforço valeu, publiquei um livro, fiz um vídeo chamado “Talking Machine” que é uma “versão visual” da publicação. Mas o que a pesquisa me ajudou mesmo é em me dar um monte de história boa pra contar, isso sim…

Tive um contato estreito durante anos com o Guilherme Vaz que foi um grande inventor neste campo da música experimental e com inserções muito poderosas no campo das artes visuais. Um artista que circulou pelo cinema (Bressane e Sergio Bernardes), pela música experimental (foi próximo do Smetak) e pela antropologia ameríndia profunda com suas viagens de décadas pela floresta e pelo sertão brasileiros. Uma coisa que me chamava muito a atenção, era que, se por um lado, sua atuação era de uma liberdade radical, por outro, sofreu muito com a solidão e a invisibilidade. O não pertencer a meio algum, fazia dele um nômade desterritorializado. Como você, que atua em circuitos parecidos, vê este risco em que liberdade e desgarramento podem levar ao isolamento.

Admiro muito a trajetória do Guilherme Vaz, e de maneira alguma poderia comparar a minha atuação ao que ele realizou em vida. Apesar disso entendo o que você quer me perguntar. O que posso te dizer não vai ser nada em comparação ao que ele sentiu, pois o que conheço dele são alguns trabalhos, e sei pouco ou quase nada dos seus sofrimentos, mas imagino o que poderia ter sentido pela natureza da sua arte, por essa liberdade radical, etc.

O que posso te dizer é: eu, como alguém que trabalha com o som e com a música, gosto de mentalizar que vou ter pessoas vendo e ouvindo o meu trabalho e me preocupo com isso. Acho isso uma puta responsabilidade. Já ouvi muitos artistas visuais desprezarem essa preocupação, acharem isso completamente desnecessário e até ingênuo. Mas eu não acho. Acho que estamos em tempos urgentes, onde todos os esforços são importantes, assim eu me interesso por assuntos/formas marginalizadas, tabus, ou pela reinvenção da realidade concreta que vai sim encontrar interlocutores. Meus trabalhos começam por elementos reconhecíveis, por exemplo: os mosquitos, a Igreja Católica, som automotivo, a música gospel, leitura da sorte, o som grave, uma construtora corrupta, etc. Esse interlocutor pode ou não se identificar com a forma com a qual eu me expresso, ou com o lugar de onde eu parto/falo, esse é um outro problema.

Mas muitas vezes o que pode funcionar nesse plano dos assuntos, dos conceitos, das formas, dos lugares de fala, às vezes é menos valorizado no plano musical/sonoro. Eu por exemplo, produzo todos os sons, trilhas, músicas dos meus trabalhos, e muitas vezes isso é tratado como um dado adicional, uma coisa banal ou menor, porque se privilegia a visão, a escultura, o conceito. Já participei de uma exposição que tinha o som como assunto principal e que simplesmente massacrou a experiência sonora de todos os trabalhos que estavam dentro do museu. Isso significa que o som não importava, e muito menos o tempo/afeto/amor com o qual eu trabalhei por meses para produzi-lo. Existem vários motivos pra isso: o código da arte contemporânea tende a marginalizar a sonoridade muito porque desconhece como é feita / concebida / produzida e existe também um condicionamento de uma atenção cada vez mais imediatista e curta e uma sensibilidade que quer consumir os trabalhos e ganhar algo com eles, seja status, seja likes de Instagram, seja uma boa foto, alguma coisa se quer ganhar. Mas com um som raramente você vai ganhar alguma coisa, porque ele dificilmente pode ser capturado como coisa. É uma experiência mais próxima das espirituais.

Sinto também com frequência o problema do meu gênero, porque existe ainda a ideia de que não é comum mulheres serem as autoras de sons então muita gente nem assimila a informação de que eu poderia ser a compositora do meu próprio trabalho (sim, já aconteceu).

De qualquer maneira, compartilho com o Guilherme Vaz essa sensação da liberdade radical que ele deveria sentir na da hora de compor. Na hora que estou compondo, começando um trabalho novo, combinando timbres, testando ritmos, organizando, muitas vezes eu nem lembro como aconteceu. Eu realmente tenho a experiência da liberdade, e é uma sensação para a qual eu quero sempre voltar, mas é tão completa que é sempre um pouco assustadora, então vou com bastante cerimônia pra esse estado. E eu acho esse lugar de liberdade tão difícil de explicar e delicioso que quero companhia ali, e por isso crio situações, momentos e ambientes para tentar levar mais pessoas para esse lugar que pode ser tão pessoal e coletivo ao mesmo tempo.

No seu site, junto ao trabalho “Tropicália transposta para o Brasil pós-TV” está colocada uma pergunta que achei bastante interessante, a saber:  “O quanto que os Tropicalistas terem se tornado estrelas midiáticas os afastou de uma transformação mais terrena da MPB em uma potência antropofágica, oral e ritualística”? O Nuno Ramos diz algo parecido quando suspeita que “o tropicalismo tenha naturalizado nossa indústria cultural até um ponto sem retorno, e que o ciclo de conquistas democráticas provenientes dessa operação tenha já se encerrado há décadas”. Eu tenderia a dizer que a naturalização da indústria cultural rebaixando nossa produção de matriz popular, se isso de fato aconteceu, se deu apesar do tropicalismo. Enfim, acho este assunto importante e queria te ouvir a respeito.

Acho a minha geração (millenial) muito arrogante, mas também muito questionadora, quer reinventar as coisas – ou se acham os inventores – mas sem meter a mão na massa do mundo real, ficam no plano digital e das ideias, dos apps, dos posts de Facebook, e talvez por causa dessa rapidez, tanta coisa ruim e interessante seja criada por nós ao mesmo tempo. É possível que tenha vindo dessa energia a minha vontade de fazer uma faixa bônus pro disco “Gilberto Gil” de 1968, que acho extremamente difícil de ouvir. Foi assim: “Talvez eu possa pensar em um revisionismo da Tropicália remixando umas coisas aqui de casa.” Não que tenha sido fácil, nem um pouco, foi muito difícil. O disco tem letras maravilhosas, melodias de cortar o coração em oito, mas com um ritmo extremamente interrompido, imagético, grandiloquente, perfeito para a TV. O que fiz foi fazer uma faixa onde uma cadência bem lenta de “Pé da Roseira”, se misturava aos gemidos de “Questão de Ordem”, e ao coro de “Domingo no Parque”, adicionei um solo de tambor djembe tocado por mim. A faixa é um grande transe e muito mais próxima do axé, do mato, da terra, do ritual. Coisas da qual o Brasil queria distância na época.

Os tropicalistas inventaram um Brasil que eu amo e cuja imagem eu tenho grande apego, uma ideia que está sempre e ainda vívida e pulsante. Mas se a indústria fonográfica brasileira não tivesse apostado em um catálogo majoritariamente internacional nos anos 70, privilegiando algumas dezenas de nomes nacionais para maximizar lucros, o que será que teria acontecido com a cultura brasileira e com a representação desses artistas no imaginário popular? Vejo a dificuldade que é de amigos pesquisadores tentando recuperar a música popular que não foi gravada nesse período ou antes disso. Num mundo midiático, essa cultura se torna invisível e não frutifica, não tem filhos, não tem influência, fica circunscrita ao seu raio de impacto oral. Adorno até tentou avisar, mas as mídias foram mais sedutoras.

Importamos os modelos de massificação norte-americanos, mas não importamos os modelos norte-americanos que conferiam mais “capilaridade” para a distribuição das culturas regionais ou de nicho. Por exemplo, um fenômeno como a Motown nunca foi possível no Brasil, porque éramos ainda mais miseráveis, injustos e racistas: uma gravadora com um proprietário preto, administrada por pretos, gravando artistas pretos e uma cidade onde os pretos eram a força trabalhadora das fábricas (Detroit). Berry Gordon Jr. apesar de todas as polêmicas, poréns e críticas, conseguiu criar um modelo de negócios que nacionalizou a música negra dos Estados Unidos, abrindo as portas para diversos outros artistas e consequentemente, outros selos e gravadoras pretas menores. Nunca houve esse fenômeno no Brasil. Aconteceram coisas análogas no Caribe, principalmente na minúscula Jamaica, mas não aqui. Nossa música gravada nasceu controlada por grandes multinacionais norte-americanas e europeias, homens brancos que determinavam a quantidade de artistas brasileiros que deveriam ser gravados. E apesar de toda “brodagem” e “sentimentalização da troca” (como diz Mangabeira Unger) que rolava nas gravadoras, a relação de poder estava ali também visível na cor de pele/nacionalidade de quem mandava e de quem recebia. Por isso, viva Tim Maia. Ele é um herói e sua gravadora Vitória Régia era uma ideia radical, visionária e profunda.

Entendo o que o Nuno Ramos quis dizer. Ali naquele período realmente havia uma oportunidade de ouro para revolucionar e trazer muito mais do Brasil à tona, de acordo com todas as coisas que pude ler e ouvir dos que participaram desse tempo. Mas estamos em um momento novo, ao mesmo tempo horrível e interessante, com uma enorme discussão sobre o empoderamento da mulher e o fim da negação do racismo com artistas jovens e talentosíssimos. Estamos em uma nova lógica de mercado fonográfico, ainda cedo para dizer o quanto somos dependentes das gigantes digitais (Apple, Google, Spotify, Youtube), e quais dessas novas culturas musicais brasileiras é de fato sustentável.

Fiquei encantado com o trabalho “Nosso Sentimento”, em que a articulação entre as vozes do Gilberto Gil e de Mutombo Da Poet (de Gana) acontece de maneira ao mesmo tempo muito lírica e potente. Há aí uma combinação de doçura e atrito que parece traduzir muito bem o que é este diálogo Brasil-África e essa nossa castigada tradição afro-brasileira. Esta experiência sonora nos faz lidar sensorialmente com questões de história e de geopolítica contemporânea. Fale um pouco da realização deste trabalho e também do projeto “Homa”.

Este trabalho veio de uma admiração enorme que tenho pela obra do Gilberto Gil, com o qual tive a felicidade de trabalhar em 2012, na exposição comemorativa de 70 anos. Desde então gosto de repensar o significado cultural de algumas de suas canções sendo “Você e Você” a que eu usei neste trabalho. Ele partiu de uma observação muito simples que tive de um aparelho que é comum nas casas de subúrbio dos Estados Unidos: um sistema de som estéreo para jardins que imita duas pedras, para que fiquem camufladas no meio das plantas. Olhando uma delas, ela me lembrava muito algumas das pedras do Arpoador. Imaginei que a outra pedra poderia ser uma outra margem, o outro lado do oceano.

Mutombo da Poet foi uma das pessoas que conheci no mês que passei em Accra, capital de Gana. Me tocou muito o jeito que ele escreve e a agressividade da sua presença e voz, que não eram muito comuns nos artistas que pude conhecer lá. Achei que seu estilo era um belo oposto da bossa-nova delicada do Gilberto Gil em “Você e Você”: uma voz muito alta e potente, sem melodia, cruamente africana. Mandei a música do Gil para o Mutombo por whatssap e traduzi o que Gil dizia. Propus que Mutombo reagisse à música do Gil e a algumas impressões muito particulares que eu tinha tido nessa viagem a Accra, sendo a principal delas a sensação de nunca ter cruzado o Atlântico de verdade, como se tivessem coisas que são intransponíveis, incompreensíveis, contatos que nunca vão de fato acontecer porque são inviáveis. O resultado físico em mim era uma grande náusea, uma vertigem de viagem de mar e como imagem eu poderia criar uma falsa impressão de que as pedras estão se mexendo.

Mutombo fez um texto incrível. A minha parte foi editar a gravação de forma que virasse um diálogo com o Gil, tratei muito bem suas vozes e compus as linhas instrumentais e gravações de campo que traduziriam essa sensação de náusea, melancolia e distância. A instalação era composta por essas duas pedras pintadas de branco, diversas outras pedras e troncos de árvore de calibre médio cortados e também pintados de branco criando uma espécie de geografia/território. Em cima deles todos, velas de umbanda de diversas entidades, portanto diversas cores, eram acesas e derretiam manchando a tinta branca.

“Homa” é meu alter ego musical e é o feminino de “homo”. Criei essa persona para quando quero lançar discos independentes de projetos artísticos ou instalações, quando vou tocar como DJ ou quando vou produzir alguém ou alguma faixa ou trilha. Senti muito essa necessidade de ter um mundo descorporificado, uma porta de saída do universo das coisas e dos objetos, de ter o lugar do som puro. É muito difícil a combinação das duas personas artísticas com a mesma intensidade, mas tudo que não cabe em uma acaba alimentando a outra, e de dois anos pra cá produzimos e compomos muitas horas de música.