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2013
De territórios, abismos e intenções
Por
Clarissa Diniz

Sustentar uma escultura a partir do inexistente, criar peso para dar densidade ao vazio e inventar espaço para dar sentido ao entre são operações que se refazem no trabalho de Túlio Pinto. Sua atividade tem combinado o vigoroso desejo de habitar o mundo – por meio daquilo que nele imprimimos – com uma espécie de embreagem sensível que faz ver que parte significativa dessa potência se dá menos pela criação de novas presenças do que pela intensificação das forças que lá estão. Se não há insistência no projeto de autonomia da escultura (e, mais amplamente, da arte), tampouco se trata da escolha por uma camuflagem ao mundo como aposta cega na invisibilidade. Antes, o trabalho de Túlio Pinto se faz no territóriolinha que tensiona e conecta essas intenções aparentemente distintas, dedicando-se a negritar aquilo que está posto, ao passo que reconhece, nesse gesto, sua própria monumentalidade.

Assim é que, para o artista, esculturas existem antes – e para além – de sua corporalização. Imaginar situações que reordenem e exercitem as forças que atravessam os corpos e os espaços já é esculpir, razão pela qual o trabalho de Túlio tantas vezes começa num desenho, num projeto ou, ainda, na proposição de um “modo”, de um método que dê sentido a um espaço-tempo qualquer, que então vai se singularizando. Como estruturas abertas, configuradas pela manutenção de forças em coalizão/confronto, mesmo suas esculturas aparentemente concluídas são, em verdade, um modo em contínua atividade. Não um objeto, mas uma situação que experimenta o estado mesmo de estar em situação, o que evidenciam os trabalhos Abismos, Territórios e Intenções, concebidos para ocupar o Santander Cultural de Porto Alegre.

Esses trabalhos, como acontecimentos, estão em processo ao longo do período em que estão montados; dar-lhes corpo é produzir tempo. Nesse sentido, são também ampulhetas. É o que demonstra Intenções, uma estrutura vertical balizada por um saco de grãos que, ao ir se esvaziando, altera a ordem de seu entorno. À medida que passa o tempo e, consequentemente, transfere-se o peso da peça, duas placas a ela relacionadas igualmente se modificam; o que é vertical se horizontaliza, e vice-versa. Como ampulheta, a situação inicial do trabalho prevê sua transformação e anuncia o caráter de reversibilidade que lhe é imanente e que, como tal, pode ser ativado, fazendo-nos atentar para a capacidade de simetrização da vida, no seio da qual as ordens que parecem estáveis podem se retrotransformar.

Trata-se, como anuncia o título do trabalho, de um jogo entre a intenção e o possível, entre as forças que conformam as estruturas e aquelas que as recriam a partir de uma conjunção de fatores tantas vezes imprevisíveis. Assim é que, mesmo em suas esculturas aparentemente mais perenes, Túlio Pinto considera duas instâncias de sua existência, o projeto/esboço e o as built (“como construído”, termo arquitetônico para os projetos que desenham as construções após estarem concluídas). A experiência de seu trabalho, a passagem de tempo que mais enfaticamente produz sua própria temporalidade, se dá, assim, entre o momento de imaginar as situações e o ponto em que podem ser desenhadas como já estabelecidas. Por sua vez, esse intervalo entre o ideal e o possível extrapola a dimensão temporal e se torna, ele mesmo, um interesse do artista.

É o que nos fala o projeto CEP, Corpo, Espaço e Percurso (2013), uma caminhada de vinte dias pelo interior do Rio Grande do Norte. A rota foi obtida a partir da projeção da proporção áurea sobre o mapa do estado (tendo como ponto de partida uma reta entre Mossoró e Caicó), perseguindo um movimento idealizado por entre aquele território. O projeto da corrida – a curva sobreposta ao mapa – contrasta com o desenho do percurso efetivamente percorrido por Túlio Pinto: se o primeiro mapa ignorava a geografia, os territórios e as fronteiras, o segundo é, por sua vez, a imagem do embate do corpo com os percursos que lhe são possíveis. CEP sublinha – desta vez através da intensidade da experiência que passa fundamentalmente pelo corpo do artista – o complexo campo de relações e forças comumente ativado por seus trabalhos, evidenciando a estreita vinculação entre as partes que coabitam os espaços, esculpindo-se mutuamente.

Instalações como Duas grandezas (2009) e Velame (2012), por exemplo, estabelecem a ocupação de um espaço como campo de relações. Atravessando vazios, pilares, árvores – planos e alturas –, criam um jogo de tensões entre os elementos que as constituem, pesando uns sobre os outros sem que seja possível, numa única visada, abarcar a totalidade do campo de relações do trabalho. Assim é que, quando nos deparamos com essas obras, somos atraídos por um volume que, após o percurso de nosso corpo/olhar, revela-se um plano esticado por um peso localizado mais adiante. Nesses projetos, diferentemente do percurso de CEP (no qual o corpo do artista responde à geografia que o atravessa), o trajeto da instalação é constituído tanto pela situação montada quanto pelo corpo do público, cuja experiência espacial é retroativada pela proposição do artista. Pois, para Túlio Pinto, o “corpo é a extensão do mundo” e, como tal, adensa o jogo de forças que tudo conecta e implica, tornando a existência uma experiência abismática à qual tentamos responder com configurações de equilíbrio ou ordem. Todavia, ainda que aparentemente natural, todo ponto zero é a resultante processual (e, portanto, inconstante) da anulação de forças que se encontram em igualdade de peso, donde o interesse de Túlio Pinto em exercitar essas somatórias.

Além das possibilidades formais dos encontros suscitados (entre matérias, pesos, espaços), tem sido reincidente no trabalho do artista a proposição de modos que preservem a vulnerabilidade dos corpos como força motriz da experiência. Paralelamente às reações dos materiais – das bolhas que se esvaziam, dos cabos que se distendem etc. –, em trabalhos como CEP ou Transposição (2012) é o corpo de Túlio que protagoniza as relações estabelecidas com o tempo, o espaço, o entorno, e, portanto, demonstra respostas às condições que vão se fazendo. Ao passo que reage aos contextos que se apresentam, no trajeto nordestino de CEP, a passagem fulminante do artista através de ambientes nos quais se torna um corpo estranho promove, por sua vez, transformações equivalentes naqueles locais, ainda que tão sutis como o deslocamento de ar, de pedras ou de calor, consideradas escultóricas pelo artista. É nesse sentido que Túlio Pinto criou, em CEP, estratégias que dão a ver algumas relações surgidas ao longo da rota, como desenhos urgentes da paisagem – feitos no calor, no tremor e no suor da corrida – e registros de seus batimentos cardíacos, que foram posteriormente sobrepostos às paisagens às quais, naquele momento, o corpo reagia.

A cruzada do artista por entre a geografia do Rio Grande do Norte se relaciona, mais adiante, a outros aspectos significativos de sua trajetória: a atenção aos territórios e o interesse por grandes empreitadas, processos exaustivos que fazem de cada gesto um movimento na direção de algo que extrapola, por fim, a medida do corpo. Presente também na situação Território (2013) – na qual a inversão da posição do tampo de vidro de uma mesa promove um corte longitudinal que divide o plano que tradicionalmente estabelece um campo de partilha (a mesa), transformando-o numa fronteira sustentada, por sua vez, pela inclinação e distanciamento das cadeiras que ali estão, cúmplices –, a percepção das limitações advindas da constituição de propriedades e posses dá as bases para a adaptação da rota de CEP e está presente, de maneiras diversas, em obras como Exercise Approach (2011) e Dispositivo temporário #5 (2012), intervenções em prédios que borram a rígida separação entre dentro e fora, público e privado.

Por sua vez, vizinhos ao esforço – não apenas físico, como também social, cultural, político – de CEP em seu engajamento com um modo, um “método” inventado pelo artista e que retroativamente reinventa seu criador, estão os projetos Cem unidades relocadas (2009) e Transposição (2012), ambos encarando o desafio de construir a partir da dedicação operária no arranjo de peças preexistentes. No primeiro, realizado numa fábrica abandonada, Túlio Pinto vigorosa e solitariamente reúne vigas inutilizadas de construção, agrupando-as e inserindo-as na arquitetura do lugar como se dali estivessem brotando, violenta e absurdamente. A estratégia construtiva de relocação de materiais, como experiência de intensificação das condições e coisas já postas no mundo, acontece com especial “obediência” metodológica em Transposição, “missão” que, como o CEP, foi autoimposta pelo artista: tratava-se de, ao longo de diversos dias, esvaziar uma pilha de tijolos colocada numa praça no centro de Porto Alegre, transpondo-os para o chão de uma galeria, a ser integralmente forrado pelos mesmos. À transformação da condição escultórica do material – de cubo em plano –, procedimento formal do trabalho que era realizado por meio de carrinhos de mão e muita caminhada, somavam-se a colaboração popular no cumprimento da tarefa e alguns dispositivos de anúncio do que ocorria (como uma memória de cálculo que contabilizava a quantidade de tijolos que iam sendo transpostos da praça à galeria, um blog no qual o artista e demais colaboradores postavam informações sobre o trabalho, ou uma série de tipos de imagens que foram perspicazmente produzidas por Túlio Pinto, revelando diariamente o status de transformação da obra).

A estrutura de trabalhos como Transposição ou CEP – nas palavras do artista, um “jogo consigo mesmo”, uma espécie de “armadilha” –, por instaurar modos contínuos de ação, ao passo que abre espaço também para a participação do outro, igualmente se vulnerabiliza ao erro, ao acidente – dimensões outras da compreensão de que criar, assim como esculpir, é estabelecer relações. Nesse sentido, seus trabalhos salvaguardam sempre alguma fissura estrutural que possibilite sua própria alteração, sua diferenciação no tempo e no espaço. Entre esses, há ainda aqueles que tomam a fluidez de uma existência dada relacionalmente – uma ontologia relacional – como ponto de partida, como as diversas experiências do artista com bolas de ar,  que tão intensamente respondem aos contextos. No vídeo Objectual (2011), por exemplo, uma dessas cadeias de cubos construídos com finas bexigas de gás hélio se dispõe ao encontro com um ambiente e com um corpo. Na relação estabelecida entre esses, a transformação se espraia: a paisagem é alterada pela invasão laranja, o corpo que carrega a estrutura vai sendo por ela carregado, a cadeia cúbica vai se metamorfoseando em coisa viva, disforme. Tudo retroage. O trabalho se torna, assim, menos o objeto construído ou a intervenção na paisagem, senão a possibilidade de  relacionar forças por meio do dispositivo criado, donde sua opção por apresentar o trabalho como um vídeo, capaz de iluminar o jogo de conexões e irrupções que circunscreve, no tempo e no espaço, a proposição do artista.

No seio desse campo de relações que pode potencialmente se revolucionar, há, ainda, o acidente. Aberto e infindo, o trabalho de Túlio, em seu gerúndio de coisa acontecendo que não se estaciona numa organização estável de forças, está passível, por outro lado, da sua própria catástrofe. Quando a somatória das forças se recusa à anulação, quando o contexto se impõe e o tempo se mostra como acaso, é a teimosia das coincidências que se faz evidente: nem tudo é negociável, nem todo corpo se permite ao avizinhamento, nem toda diferença se deixa moldar como força coincidente. Alguns são, assim, os trabalhos que desmoronam, que desobedecem ao método-armadilha de seu criador, o qual, por sua vez, igualmente está sob o risco de que seu corpo, desigual de si mesmo, desvirtue-se do jogo que lhe foi imposto – como ocorrido em CEP, quando os pés machucados de Túlio Pinto o fazem parar a corrida.

A iminência do acidente – experiência colocada na situação Abismo (2013), na qual duas peças frágeis são montadas na borda de uma grande mesa, num mútuo equilíbrio preciso, porém inseguro – ativa a percepção, excitando o magnetismo entre os corpos, o espaço do entre que, escultórico, é capaz de desmontar a tensa linha da iminência para lançá-la ao terreno do acontecido. O quase de Abismo, modo de produzir tempo a partir da expectativa do acontecimento do instante seguinte, contudo, às vezes acontece. A inusitada documentação do momento de libertação de uma grande bolha de ar em Espera (2010), registrado por uma educadora da exposição da qual a obra participava, revelam o momento exato em que a linha da iminência é atravessada, e a constituição dos corpos se altera radicalmente. Aquele pequeno ponto de revolução emancipa as partes, tornadas libertas do campo de relações que lhes dava forma e, como tal, lhes reduzia as possibilidades de diferença e deriva.

Esse cruzar a linha inspira, mais adiante, a experiência de continuidade do trabalho de Túlio Pinto. Se nos perguntamos para onde foi a bolha de Espera, trabalhos como Práticas de reconhecimento e algumas aproximações (2012) nos respondem que os corpos continuam em ação uns nos outros mesmo após seu descolamento físico. Consistindo numa instalação formada por um jardim de alfaces, o trabalho teve sua temporalidade expandida mesmo após sua desmontagem por meio de uma ceia coletiva na qual as alfaces eram o prato principal. Comer a escultura – assim como fazer uso dos tijolos de Transposição para construir uma casa, por exemplo – se torna modo de perpetuação amórfica da experiência escultórica. Mesmo que abstrata ou invisivelmente, a devoração das peças (de um lado, seu desmonte; de outro, a possibilidade de comer algumas de suas partes) dá continuidade ao campo de relações que originalmente lhes constituía, alimentando a infinita transformação dos corpos que a partir dali foram postos em contato. É também o caso de Intenção, cuja baliza central – o peso que equilibra as partes da estrutura –, um saco de grãos de painço, anuncia um possível porvir através de sua própria devoração. Algo como uma ampulheta que se recusa a parar de produzir tempo.