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2022
Descomprimidos
Por
Thiago de Paula Souza

Anos atrás, enquanto conversávamos sobre seu trabalho, Vivian Caccuri me contou detalhes sobre alguns dos eventos ocorridos durante a realização das Caminhadas silenciosas. Baseado em perambulações programadas por determinadas cidades, ou, como ela descreve, “experiências de derivas urbanas”, esse projeto é um dos mais emblemáticos da artista e se desenrola desde 2012. Para a realização de cada uma das obras, Vivian convida um grupo de vinte pessoas — em geral, que não se conhecem — para passar cerca de oito horas juntas, em comum acordo de não se comunicarem verbalmente.

Apesar de essas experiências já terem sido realizadas em lugares tão distintos quanto Manaus e Veneza, ou Riga e São Paulo, o Rio de Janeiro, cidade que a artista escolheu como morada, segue como matriz para possíveis novas iterações do projeto por sintetizar elementos que não apenas compõem essas andanças, mas que também estruturam a prática de Caccuri. Certamente, um desses elementos é o interesse da artista em investigar como os efeitos da produção sonora em diferentes espaços afetam a interação social. Em outras palavras, uma chave para o entendimento da pesquisa de Caccuri é seu interesse pela maneira como o som (ou a ausência dele) funciona como um mediador de relações, moldando diversas formas de sociabilidade, sejam elas entre comunidades humanas ou não humanas.

Daquela conversa, um relato que ainda guardo na memória se refere à sua descrição de um intenso silêncio que sentiu durante um dos percursos realizados no Rio. Ao entrar com o grupo em uma sala reservada para as reuniões da maior autoridade política brasileira da época, Vivian percebeu que o silêncio daquele cômodo não funcionava apenas como um escudo diante das pressões do poder, mas criava também uma sensação de isolamento em relação a toda a dinâmica da cidade que se movia lá fora. Esse grupo de performances coletivas idealizado pela artista toma como tarefa tirar o domínio da comunicação verbal como a principal ferramenta de interação humana, mas, em vez da proteção do silêncio que ela encontrou naquela sala, o resguardo vocal visa afinar nossos outros sentidos e forjar possibilidades de comunhão não apenas entre as participantes, mas também entre os diferentes seres que coexistem e atravessam espaços públicos.

Essas possibilidades de comunhão são também o eixo central entre os trabalhos apresentados em Descomprimidos, a primeira individual de Vivian Caccuri na Galeria Millan. As obras aqui reunidas atualizam o contínuo interesse da artista em investigar aspectos das interações sociais entre diferentes comunidades e focam também em um desejo de expansão e reconexão após os longos períodos de quarentena. Dessa vez, porém, a pesquisa sonora se apresenta em paralelo aos seus trabalhos bidimensionais. Produzidos ao longo de 2021 e 2022, estes acenam para os redemoinhos de emoções que a artista acredita que marcam a experiência cotidiana de se viver no Brasil no último biênio. O isolamento, a crescente sensação de injustiça social, a instabilidade política e institucional, somadas à euforia e ao desejo de voltar às pistas e às festas, após o afrouxamento das medidas sanitárias, funcionam como ponto de partida para as criações das obras.

Logo na primeira sala do Anexo, vemos uma robusta instalação, concebida especificamente para o local e composta por uma estrutura de andaime, múltiplos alto-falantes e fios emaranhados, ecoando através de diversos canais os sons corporais produzidos pelo próprio metabolismo da artista. Com o auxílio de um microfone de contato e um estetoscópio digital, Vivian pode registrar e gravar os ruídos produzidos pela atividade de seu sistema digestivo, de seu ventre, de seu fluxo respiratório, os movimentos de seus ossos e alguns tons mais guturais.

Na segunda sala, instalados com certa distância da parede e sustentados por hastes de metal, encontram-se seus mais recentes trabalhos bidimensionais. O efeito de feixes de luz no material cria uma ilusão de profundidade e movimento nas cenas, que se intensificam tanto com a gradação de cores quanto com as figuras bordadas. Em Mosquito Shrine IV (2022), Derretimento (2022), e Void 2 (2022), as imagens criadas por Caccuri retratam conjuntos de corpos entrelaçados, entorpecidos, em diversas poses e em puro êxtase. Derretimento e Void 2 parecem recortes menores da grande celebração representada em Mosquito Shrine IV, onde vemos outros elementos frequentes do repertório da artista: os grandes sistemas de som e linhas bordadas que parecem traduzir ondas sonoras — conectando todos os seres que habitam aquela paisagem cheia de sombras.

São elas também que parecem modular a energia daquele ambiente, canalizando o prazer, e apesar da aparência de um momento de puro delírio e euforia coletiva, a satisfação pessoal ali é primordial. A energia muda radicalmente em Mosquito Shrine V (2022), Descompressão (2022) e Compressão (2022). É difícil dizer se foram as doses de psilocibina que caíram ou se foi a mudança da frequência sonora que alterou o clima do ambiente. Os corpos somem dos planos avermelhados, e a paisagem agora parece apontar para momentos posteriores do grande arrebatamento visto há pouco. O som segue presente, seja pelas linhas ondulares, reproduzindo frequências sonoras, ou pelos alto-falantes pendurados na bela porém devastada paisagem que vemos em Mosquito Shrine V. Observamos uma imagem que antes parecia pertencer a filmes de ficção científica, mas que, diante da iminente catástrofe climática, sugere um cartão-postal de um futuro próximo.

A forma tridimensional de Fantasma roupa preto (2021) é o ponto de partida de uma grande teia que conecta todos os trabalhos da sala. Sua presença sinistra, ali, parece constituir a renderização têxtil do mosquito mencionado nos títulos dos dois trabalhos da exposição citados anteriormente, ao mesmo tempo que ecoa uma outra linha da pesquisa de Caccuri: a nem sempre equilibrada relação entre seres humanos e insetos. Diante dessa figura de estranha grandeza no espaço expositivo, somos levados a especular se nós, assim como aqueles sujeitos vistos há pouco nos bordados, também estaríamos aqui enredados e entorpecidos diante do templo.