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2005
Desenhos de ilustração – Pinacoteca de São Paulo
Por
Stella Teixeira de Barros

A relação entre imagem e texto deveria a princípio manter certa afinidade. A imagem, intuímos, deve corresponder ao discurso. Ilustrações seriam condensações visuais, ícones quase emblemáticos dos textos. Mas a correspondência entre palavras e imagens não é fácil de ser resolvida, é subjetiva e, às vezes, pode ser surpreendentemente vaga. Existem momentos em que a liberdade no registro dos traços gráficos permite ampliações do texto, adicionando elementos que a escrita deixou em branco.

Cor, sabor e forma são qualidades que não exigem nenhuma lógica ou exercício dedutivo. Ao interligar os elementos, o artista promove uma oscilação permanente, e mesmo quando o desenho encena uma simetria, a agitação das figuras não as deixa se acomodarem. O conjunto das ilustrações compõem com toda sua obra uma consonância em que as imagens se

aproximam de um mundo percebido de modo subjacente. A digressão que as ilustrações de Alex Cerveny perfaz é imprevisível, e a relação pode se esgarçar: por vezes parece não haver nenhuma lógica ou raciocínio dedutivo, nenhum esforço em ligar imagem e texto. São traços inegavelmente impregnados da visualidade contemporânea, que mesclam às nossas memórias a intervenção incessante das mídias: da TV e do cinema à internet.

A técnica é apurada, melhor, as técnicas... porque para Cerveny o prazer está na experimentação de técnicas e materiais: aquarela, desenho, gravura, escultura, pintura, colagem. Sua criatividade incorpora registros da infância e outros da cultura erudita e popular. A singeleza aparente dessas pequenas imagens ilude: elas são soberanas e se impõem com firmeza e impacto. Por vezes se aglomeram e criam um corpo a corpo entre si, rebatendo o esforço de digerir o que não é digestível. Em outras ocasiões parecem querer se confrontar, mais se esquivam uma das outras, como se quisessem se resolver. Atestam os sentidos não “digeridos” da nossa cultura, negando o caráter simplista que a obra poderia passar. Na verdade são imagens pulsantes, que não se apaziguam, mas ativam percepções e levantam questões essenciais, que seduzem para tentar compreender.

Ainda que diversas figurações sejam recorrentes – como torções, chamas de fogo com quatro, cinco ou seis pontas, homens ou animais com cabeça de martelo, referências mitológicas ou à história da arte, cataclismos da natureza – não dá para falar em repertório, porque o vento sopra e as imagens se transformam.

O que era originalmente lembrança da experiência do contorcionista de circo, “nos meus vinte e pouquinhos anos, quando eu era ‘Elvis Elástico, o homem de plástico’. Essa aventura durou ao todo uns dois anos, primeiro no circo- escola, depois num circo de periferia e em apresentações esporádicas... meu dia de maior ‘glória’ circense foi me apresentar num estádio para umas 3.000 crianças antes da chegada do Papai Noel em Cotia. Momentos inglórios, foram vários. Meu show não tinha nada da estética ‘Cirque du Soleil’... era bem brega mesmo!” ou, de origem mais remota ainda, a lembrança da acácia retorcida na praça de Nova Granada – interior paulista, onde viviam os avós – transmuda-se e multiplica-se em torções de membros, de outras árvores, de coisas. Ou ainda em arabescos líricos.

A vocação do artista se abastece de uma visão amplificada da cultura – que não é limitada às sugestões do texto ou a paradigmas auto- referenciais – e de sua atitude ética e estética: as ilustrações são portadoras de valores que contam não necessariamente coisas novas, mas as de hoje e as de ontem, através de um modo antigo, e ao mesmo tempo novo de olhar as coisas. Indaga com rigor, mas também com paixão e com humor sobre as experiências cotidianas em meio às conturbações do mundo.