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2022
Escritura é rastro, desenho é sopro
Por
Galciani Neves

Graphein, do grego, significa sulcar ou arranhar uma superfície, é escrever. Gramma, também do grego, quer dizer traço – escrito e desenhado. O sufixo deriva de graphé, que pode ser compreendido como letra do alfabeto. Assim, grama, a unidade de peso, tem uma origem bem próxima à gramma, pois algo que pesasse pouco era comparável, em termos de tamanho e leveza, a uma letra, um traço ou pequeno desenho. As primeiras escrituras, primeiros desenhos e relatos foram inscritos, pintados, sulcados, raspados em superfícies como pedras, terra e argila. A humanidade vive a recordar esses fatos.

No Ocidente, a cultura compartimentou o que surgiu imbricado: desenho, escritura e também a fala. Ao que Jacques Derrida bravamente perscrutou: “Onde começa a escritura? Quando começa a escritura? Onde e quando o rastro, escritura em geral, raiz comum da fala e da escritura, se comprime como ‘escritura’ no sentido corrente?”.¹ O autor se perguntou sobre o sujeito que decide olhar-se e ver o mundo também em si e presentificar essa experiência em uma re-apresentação. A escritura e/ou o desenho instauram-se e refletem, então, o sujeito e sua dolorosa interrogação sobre si e acerca do mundo.

Essa trama de origens, significados, com suas atualizações, e desejos de fazer mundos com traços, rastros, escrituras, desenhos, que têm tanta complexidade (a ordem do discurso, o lugar de fala, o corpo que desenha), se mostra como um procedimento para tatear (quase errático, e por que não?) os trabalhos de Guga Szabzon (São Paulo, 1987) e José Damasceno (Rio de Janeiro, 1968). É, portanto, também parte do processo para selecionar as obras que integram o stand da Galeria Millan na ArPa – feira de arte. Desse novelo veio também o título do projeto: Escritura é rastro, desenho é sopro. Sugerimos, então, uma ambivalência, uma sobreposição e/ou uma simultaneidade entre escritura e desenho e uma possibilidade de construção de narrativa que vagueia entre tempos: o do rastro (gesto que aconteceu e deixou marcas) e o do sopro (aquilo que, de dentro para fora, se espalha, atravessa as coisas e a elas adere).

A primeira questão, que envolve escritura e desenho, propõe mesmo que pensemos uma ausência de hierarquia, esta que tanto demarcou o método e a função de cada uma dessas práticas e que se manifesta em ideias como: a escritura é uma declaração de credibilidade, confirma a palavra lavrada, enquanto o desenho é projeto, ornamento ou especulação visual.

Vejamos, então, a presença da linha nos trabalhos de Guga e Damasceno: ela se dá a ver no desenho, por força própria, deixando rastros de um corpo e propondo possibilidades de relação com outro corpo. A linha, como escritura e como desenho, em trabalhos como Beira (2022), de Guga, atravessa e demarca espaços no feltro, orienta e chama o olho a percorrer sua trama. Foge, muda de orientação e, assim, vai deixando rastros. A escritura e o desenho, como em Indestrutível (2019), da mesma artista, constituem a palavra em meio a uma fragmentação de linhas. O indestrutível acontece na explosão, uma espécie de “desenho-inscrição” em que palavra e imagem se desassociam. Nos trabalhos de Damasceno, a linha aparece em materiais diversos, circunscrevendo contornos, como em Iguais (2018); alinhavando cenas a um só tempo tristes e hilárias, como em Isto não é um apito (2020); e também promovendo fendas, como em Colmeia (2016). A linha determina diferenças e afinidades entre a obra, o espaço, o material e suas composições, “na sucessão de pequenos planos”, como afirma Damasceno a respeito do trabalho Elastisk Kino (2022). Nesses distintos acontecimentos, a linha de Damasceno é escritura/desenho no e com o espaço.

A segunda questão arrisca uma compreensão de tempos que se aliam à escritura e ao desenho e que, assim, podem também contribuir para reconfigurar tais noções. Como dito, as formulações aqui experimentadas, envolvendo escritura e desenho, tentam de certo modo driblar as obviedades e convenções que os circundam. Assim, o convite é para visualizar a escritura como um gesto que é rastro do corpo, evidência do corpo, que se modifica no tempo e no espaço de sua feitura e de sua percepção. “A escritura escreve-se, mas estraga-se também na sua própria representação”, diz Derrida. A escritura, portanto, como que se livra de seu ordenamento rígido, permanente, imutável, posto que é ação do corpo e que o corpo vibra e muda. Uma dimensão temporal do desenho aliado a sopro é: aquilo que se joga no mundo sem a necessidade de cumprir contrato com a forma. Um sopro que não sabe seu destino e que por isso se espalha. E muda à medida que adere aos espaços, às coisas, às superfícies, perpassando-as também. Uma formulação de desenho que se reconstitui a todo instante, que ora se pretende ilegível, ora atua como risco, rasgo, ou que, por vezes, se protege-se de si próprio. Sua ameaça é se expor, pois exterioriza-se e logo se refaz.

Assim, podemos pensar, fazem-se os desenhos e as escrituras de Guga e Damasceno – como acontecimentos no espaço, que jogam com o público, pluralizando-se e pulverizando-se. Nesses atravessamentos temporais entre desenho e escritura, um não é estrutura nem projeto para o outro. E, nos trabalhos de Guga e Damasceno, essas hibridizações entre escritura e desenho, e entre tempos, parecem ser constantes, promovem tramas, ambivalências, trocas, des-limites plásticos. Também constituem um lugar de convivência entre as diferenças e singularidades nas poéticas: Guga e sua concentração em um desenho que fura e cria percursos no feltro, e Damasceno tencionando questões escultóricas e processos de construção objetuais. Escritura como desenho, desenho como escritura, sendo rastro, sendo sopro.

Essas experimentações, próprias de quem olha o mundo e nele resiste, não apontam para uma incoerência de linguagem (o que não é de todo mal, dada a categorização que ainda aterroriza as produções artísticas), mas, antes, apropriam-se de conceitos muito arraigados na tradição para, então, afetá-los, destituí-los e, assim, aí nessas inscrições, fazer desenho, fazer escritura, fazer linguagem, como nos diz Octavio Paz, deslizando: “entre o que calo e sonho,/ entre o que sonho e esqueço,/ [...] entre o sim e o não:/ diz/ o que calo,/ cala/ o que digo,/ sonha/ o que esqueço./ Não é um d izer:/ é um fazer./ É um fazer/ que é um dizer”. ²

 

Galciani Neves é professora e curadora. Tem mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É autora do livro Exercícios críticos: gestos e procedimentos de invenção (Educ – SP e Fapesp, 2016). Desenvolve projetos curatoriais que traçam diálogos entre arte, literatura e questões ambientais. Atualmente, é diretora artístico-pedagógica da Biblioteca-Floresta.

 

¹ Derrida, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.

² Paz, Octavio. Arbol adentro – poemas (1976-1988). Barcelona: Seix Barral, 1988.