Graphein, do grego, significa sulcar ou arranhar uma superfície, é escrever. Gramma, também do grego, quer dizer traço – escrito e desenhado. O sufixo deriva de graphé, que pode ser compreendido como letra do alfabeto. Assim, grama, a unidade de peso, tem uma origem bem próxima à gramma, pois algo que pesasse pouco era comparável, em termos de tamanho e leveza, a uma letra, um traço ou pequeno desenho. As primeiras escrituras, primeiros desenhos e relatos foram inscritos, pintados, sulcados, raspados em superfícies como pedras, terra e argila. A humanidade vive a recordar esses fatos.
No Ocidente, a cultura compartimentou o que surgiu imbricado: desenho, escritura e também a fala. Ao que Jacques Derrida bravamente perscrutou: “Onde começa a escritura? Quando começa a escritura? Onde e quando o rastro, escritura em geral, raiz comum da fala e da escritura, se comprime como ‘escritura’ no sentido corrente?”.¹ O autor se perguntou sobre o sujeito que decide olhar-se e ver o mundo também em si e presentificar essa experiência em uma re-apresentação. A escritura e/ou o desenho instauram-se e refletem, então, o sujeito e sua dolorosa interrogação sobre si e acerca do mundo.
Essa trama de origens, significados, com suas atualizações, e desejos de fazer mundos com traços, rastros, escrituras, desenhos, que têm tanta complexidade (a ordem do discurso, o lugar de fala, o corpo que desenha), se mostra como um procedimento para tatear (quase errático, e por que não?) os trabalhos de Guga Szabzon (São Paulo, 1987) e José Damasceno (Rio de Janeiro, 1968). É, portanto, também parte do processo para selecionar as obras que integram o stand da Galeria Millan na ArPa – feira de arte. Desse novelo veio também o título do projeto: Escritura é rastro, desenho é sopro. Sugerimos, então, uma ambivalência, uma sobreposição e/ou uma simultaneidade entre escritura e desenho e uma possibilidade de construção de narrativa que vagueia entre tempos: o do rastro (gesto que aconteceu e deixou marcas) e o do sopro (aquilo que, de dentro para fora, se espalha, atravessa as coisas e a elas adere).
A primeira questão, que envolve escritura e desenho, propõe mesmo que pensemos uma ausência de hierarquia, esta que tanto demarcou o método e a função de cada uma dessas práticas e que se manifesta em ideias como: a escritura é uma declaração de credibilidade, confirma a palavra lavrada, enquanto o desenho é projeto, ornamento ou especulação visual.
Vejamos, então, a presença da linha nos trabalhos de Guga e Damasceno: ela se dá a ver no desenho, por força própria, deixando rastros de um corpo e propondo possibilidades de relação com outro corpo. A linha, como escritura e como desenho, em trabalhos como Beira (2022), de Guga, atravessa e demarca espaços no feltro, orienta e chama o olho a percorrer sua trama. Foge, muda de orientação e, assim, vai deixando rastros. A escritura e o desenho, como em Indestrutível (2019), da mesma artista, constituem a palavra em meio a uma fragmentação de linhas. O indestrutível acontece na explosão, uma espécie de “desenho-inscrição” em que palavra e imagem se desassociam. Nos trabalhos de Damasceno, a linha aparece em materiais diversos, circunscrevendo contornos, como em Iguais (2018); alinhavando cenas a um só tempo tristes e hilárias, como em Isto não é um apito (2020); e também promovendo fendas, como em Colmeia (2016). A linha determina diferenças e afinidades entre a obra, o espaço, o material e suas composições, “na sucessão de pequenos planos”, como afirma Damasceno a respeito do trabalho Elastisk Kino (2022). Nesses distintos acontecimentos, a linha de Damasceno é escritura/desenho no e com o espaço.
A segunda questão arrisca uma compreensão de tempos que se aliam à escritura e ao desenho e que, assim, podem também contribuir para reconfigurar tais noções. Como dito, as formulações aqui experimentadas, envolvendo escritura e desenho, tentam de certo modo driblar as obviedades e convenções que os circundam. Assim, o convite é para visualizar a escritura como um gesto que é rastro do corpo, evidência do corpo, que se modifica no tempo e no espaço de sua feitura e de sua percepção. “A escritura escreve-se, mas estraga-se também na sua própria representação”, diz Derrida. A escritura, portanto, como que se livra de seu ordenamento rígido, permanente, imutável, posto que é ação do corpo e que o corpo vibra e muda. Uma dimensão temporal do desenho aliado a sopro é: aquilo que se joga no mundo sem a necessidade de cumprir contrato com a forma. Um sopro que não sabe seu destino e que por isso se espalha. E muda à medida que adere aos espaços, às coisas, às superfícies, perpassando-as também. Uma formulação de desenho que se reconstitui a todo instante, que ora se pretende ilegível, ora atua como risco, rasgo, ou que, por vezes, se protege-se de si próprio. Sua ameaça é se expor, pois exterioriza-se e logo se refaz.
Assim, podemos pensar, fazem-se os desenhos e as escrituras de Guga e Damasceno – como acontecimentos no espaço, que jogam com o público, pluralizando-se e pulverizando-se. Nesses atravessamentos temporais entre desenho e escritura, um não é estrutura nem projeto para o outro. E, nos trabalhos de Guga e Damasceno, essas hibridizações entre escritura e desenho, e entre tempos, parecem ser constantes, promovem tramas, ambivalências, trocas, des-limites plásticos. Também constituem um lugar de convivência entre as diferenças e singularidades nas poéticas: Guga e sua concentração em um desenho que fura e cria percursos no feltro, e Damasceno tencionando questões escultóricas e processos de construção objetuais. Escritura como desenho, desenho como escritura, sendo rastro, sendo sopro.
Essas experimentações, próprias de quem olha o mundo e nele resiste, não apontam para uma incoerência de linguagem (o que não é de todo mal, dada a categorização que ainda aterroriza as produções artísticas), mas, antes, apropriam-se de conceitos muito arraigados na tradição para, então, afetá-los, destituí-los e, assim, aí nessas inscrições, fazer desenho, fazer escritura, fazer linguagem, como nos diz Octavio Paz, deslizando: “entre o que calo e sonho,/ entre o que sonho e esqueço,/ [...] entre o sim e o não:/ diz/ o que calo,/ cala/ o que digo,/ sonha/ o que esqueço./ Não é um d izer:/ é um fazer./ É um fazer/ que é um dizer”. ²
Galciani Neves é professora e curadora. Tem mestrado e doutorado em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. É autora do livro Exercícios críticos: gestos e procedimentos de invenção (Educ – SP e Fapesp, 2016). Desenvolve projetos curatoriais que traçam diálogos entre arte, literatura e questões ambientais. Atualmente, é diretora artístico-pedagógica da Biblioteca-Floresta.
¹ Derrida, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2011.
² Paz, Octavio. Arbol adentro – poemas (1976-1988). Barcelona: Seix Barral, 1988.
São Paulo, Brasil
São Paulo, Brasil
Gwangju, Coreia do Sul
Rio de Janeiro, Brasil
Ribeirão Preto, Brasil
São Paulo, Brasil
Porto Alegre, Brasil
Arévalo, Espanha
Porto Alegre, Brasil
São Paulo