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2022
Lastros e tensões. Deformações e acolhimento
Por
Guilherme Wisnik

Nas esculturas de Túlio Pinto aqui apresentadas, as brutas barras de ferro em perfil H, com suas geometrias tectônicas, assemelham-se a peças de trilhos de trem. São, nesse sentido, quase ready-mades: objetos presentes na vida cotidiana e extraídos de um contexto utilitário para serem ressignificados no trabalho de arte – e daí, eventualmente, sofrendo transformações formais. O arranjo dessas peças em conjunto mobiliza tensão, esforço de empilhamento e inteligência no sentido de contrabalançar os seus pesos excessivos em organizações equilibradas, que se mantenham de pé, sem tombar.

A genealogia aqui é inequívoca. Pensamos logo no belíssimo “castelo de cartas” de chapas grossas de aço, de Richard Serra (One Ton Prop: House of Cards, 1969), com seu equilíbrio instável, feito de peças muito pesadas que apenas se apoiam umas nas outras. E ainda, retrocedendo mais meio século, nos lembramos do Contra-relevo de canto (1914-15), de Vladimir Tátlin, com suas peças de ferro tensionadas por cabos de aço, construindo um ambiente em quina de paredes por meio de uma escultura, que, naquele momento, deixava de ser mero objeto autônomo. Uma escultura-construção, que se dissociava dos paradigmas da modelagem e da talha, fundando caminhos muito promissores para a arte produzida do século 20 em diante.

Sabemos que a arte de vertente construtiva criou raízes importantes e duradouras no Brasil. Se, no final dos anos 1940, o crítico Mário Pedrosa ainda via a disputa contra a arte figurativa e os resíduos de identidade nacional de nosso modernismo como uma dura “batalha pela abstração”, dez anos depois, com o desenvolvimento dos concretismos e a inauguração de Brasília, racionalistas de primeiro time, como o semiólogo alemão Max Bense, considerariam o Brasil o grande herdeiro do iluminismo ocidental, a pátria cartesiana por excelência.[1] Ideia que, embora hoje possa parecer uma espécie de piada de mau gosto, não deixa de esclarecer sobre a força da tradição construtiva brasileira, forjada na interação entre artes visuais, design, arquitetura e engenharia. Uma tradição que não se esgotou na geração de Franz Weissmann e Amilcar de Castro, mas prolongou-se produtivamente nas décadas seguintes em trabalhos como os de Waltércio Caldas, no Rio de Janeiro, e os de José Resende, em São Paulo, por exemplo, e, mais recentemente, chegando, entre outros, aos de Túlio Pinto, em Porto Alegre, já em pleno século 21.

E como é que um artista jovem como Túlio Pinto lida com todo o peso dessa tradição? Para começo de conversa, me parece que a opção por trabalhar com materiais pesados alegoriza de certa forma essa ideia. Há, literalmente, uma “barra” a ser carregada e passada adiante com dificuldade. Mas essa “barra”, evidentemente, não vem agora investida da moralidade exemplar dos trabalhos concretos e neoconcretos. Pois, quando Amilcar de Castro cortava e dobrava chapas de aço de duas polegadas, estava quase que, de forma decidida e voluntariosa, abrindo um espaço que precisava ser conquistado: pela industrialização ainda incipiente, por um maior acesso aos bens de consumo, por mais racionalidade nas relações sociais. Hoje, no entanto, mais de meio século depois, enxergamos aquele mundo construtivista como que virado de ponta cabeça. Pois, não apenas o projeto moderno parece ter falhado em construir um futuro emancipado, mas também a própria sociedade brasileira forjada com a Nova República – cuja miragem simbólica não deixa de ser, ainda, a arquitetura e o urbanismo de Brasília – está se desmanchando.

Daí, a meu ver, a força desses encontros improváveis, nos trabalhos de Túlio Pinto, entre ferro e vidro, ou entre as formas geométricas claras e o organicismo informe de estruturas frágeis que se amoldam ao esforço bruto de compressão. Ou, ainda, entre o peso da barra de ferro, de extração industrial, e a consistência mutante da película vítrea, que, soprada delicadamente pelo pulmão de um trabalhador-artesão, esculpe-se em formas pelo movimento de massas de ar. Digo que são fortes porque esses encontros, além de improváveis, são agressivos. A primeira impressão que temos ao ver esses trabalhos escultóricos de Túlio Pinto é a de que as bolhas de vidro vão estourar, já que, aparentemente, não poderiam resistir ao apoio daquelas massas brutas. Por isso, o paradoxo, que, nos trabalhos do artista, ganha ares de uma espécie de milagre laico, ou, na verdade, de uma explicitação materialista: os volumes de vidro são, sim, muito resistentes, e ainda mais quando sua geometria se contorce, distanciando-se da fragilidade das chapas planas. Assim, enquanto as barras de ferro realizam a força de empilhamento, as informes bolhas de vidro se deformam para apoiá-las. O conflito se resolve provisoriamente em acomodação.

Os trabalhos mais recentes de Túlio Pinto, apresentados nesta exposição, realizam uma espécie de síntese entre dois caminhos paralelos e distintos que ele já vinha traçando em sua carreira há mais de uma década. Um deles tem como baliza o uso de bexigas coloridas, infladas tanto por ar soprado quanto por gás hélio. Refiro-me, por exemplo, a trabalhos performáticos, como Unicórnio (2015),[2] vídeo em que o artista registra sua caminhada por formações rochosas no Arizona com uma fantasia do animal mitológico e, presa às costas, uma teia de balões lineares cor de laranja – cor complementar em relação ao azul do céu –, mas também a trabalhos instalativos, como Tempo – ciclo de 31 dias (2010), em que um bloco de concreto se apoia sobre um balão cheio de ar, comprimindo-o progressivamente à medida que os dias passam. Temos aqui tanto a presença de uma vertente artística surrealista, no primeiro caso, quanto a incorporação do tempo lento da vida em suas transformações, no segundo, em diálogo aberto com a arte povera italiana. Assim, o balão de aspecto pop, que vai pouco a pouco murchando e cedendo espaço ao avanço do bloco de concreto que o comprime, não deixa de comentar inteligentemente a relação de oposição que se estabelece entre a mera presença física do bloco inerte e a fragilidade mutável do ar soprado dentro de uma bexiga de látex – objeto de borracha que, não por acaso, carrega o nome de um órgão do corpo humano.

O outro caminho mencionado acima é bem distinto desse primeiro, e se refere a um paradigma mais diretamente construtivo, filtrado pelo minimalismo e pelo pós-minimalismo norte-americanos. Penso aqui em sua família de esculturas feitas com blocos estruturados por tecidos esticados, como em Diagonal (2011), e também naquelas feitas de matérias e volumes distintos e interpenetrados, em relações de peso e contrapeso que criam equilíbrios instáveis. Refiro-me, por exemplo, aos trabalhos da série Compensação (2013), em que cubos vazados de aço, apoiados em finas arestas, são transpassados por lâminas de vidro, que ajudam no equilíbrio global da peça. E, também, a trabalhos em que lâminas de vidro inclinadas se equilibram por meio de linhas dobradas no espaço, feitas de vergalhão (Retângulo #2 e Retângulo #3, de 2018), ou por cordas presas a pedras que funcionam como lastro (série Nadir). Em uma das peças dessa série, aliás, chamada Nadir #8 (2014), uma escada vazada de ferro se ergue diagonalmente para o nada, repuxada em contrapeso por uma corda que a une a uma placa de vidro inclinada em sentido inverso, lastreada em ambas as pontas por pedras que flutuam rentes ao chão. Aqui, Túlio Pinto combina algo da leveza construtiva e surrealista de Fred Sandback com os volumes anódinos e vazios de Sol LeWitt, criando um caminho próprio entre a abstração e a figuração, e que pendula no ar como se fosse uma gangorra de pedras. São esculturas que realizam, como define o próprio artista, uma espécie de “performance dos materiais”.[3]

Como se pode perceber, os trabalhos mais recentes do artista, que aqui se apresentam, filtram elementos que estavam presentes em ambas as vertentes do seu trabalho anterior, criando uma síntese nova. Agora, o tensionamento dinâmico que se manifestava na forma de cordas e pedras transferiu-se para os pontos críticos representados pelos vínculos entre as barras de ferro criados pelas bolhas de vidro, que, por sua vez, substituem, em registro alterado, as antigas bexigas. Fisicamente falando, esses vínculos agora se tornaram mais rígidos e estáticos, congelando o tempo de deformação em um dado instante. Porém, do ponto de vista formal, essas bolhas repuxadas, como que esmagadas pelo apoio do ferro, parecem geleias escorrendo, dando-nos a impressão de um processo ainda em andamento. O que não deixa de ser uma espécie de teatralização irônica (e meio expressionista) de processos que antes eram puramente físicos, já que o vidro solidificado, diferentemente da bexiga, não poderia prosseguir deformando-se sem se romper.[4]

Na história da arquitetura os vínculos são elementos fundamentais, onde, não por acaso, muita expressividade foi colocada. Pensemos, por exemplo, no capitel, que é o coroamento de colunas e serve para alargar o ponto de encontro entre essas mesmas colunas, colocadas em pontos críticos da estrutura sujeitos a fortes momentos fletores, e a viga que apoia a cobertura. Essas peças, que poderiam ser apenas elementos técnicos, se transformaram, na mão dos gregos, em pedras adornadas de folhas ou de curvas, conforme o modo estético que se escolhesse (dórico, jônico ou coríntio, por exemplo). Já em tempos modernos e contemporâneos, esses vínculos foram, muitas vezes, sendo trocados por peças dinâmicas, como roletes de aço, juntas de neoprene e elastômeros.

Quando constrói vínculos de vidro para articular suas barras metálicas, Túlio Pinto dialoga, em escultura, com a história da construção. Mas substitui a demarcação das juntas – algo tão codificado desde a arquitetura greco-romana – por peças transparentes, como que subtraindo a matéria (ao menos visualmente) nos pontos críticos da estrutura, tornando o conjunto leve e intrigante. Isto é: justamente ali, nos pontos de amarração, nos nós de maior tensão estrutural, surge uma espécie de vazio, um espaço negativo, que reforça o sentido de paradoxo apontado anteriormente, e que podemos associar ao conceito estético de “graça”. Penso na reflexão espiritualista de Simone Weil, quando observa que a “graça” constitui a única exceção à correspondência direta e lógica entre “os movimentos naturais da alma”, que nos elevam, e as “leis da gravidade material”, que nos puxam para o chão. Por isso, pondera Weil, é certo que “a gravidade faz descer” e “a asa faz subir”. No entanto, ao pensar no papel da arte, ela se pergunta, de forma estimulante: “que asa na segunda potência pode fazer descer sem gravidade?”[5]

Muito recentemente, na 13ª edição da Bienal do Mercosul, aberta em setembro de 2022 em Porto Alegre, o artista realizou uma intervenção urbana de grande porte chamada Batimento. Apropriando-se de vários edifícios do centro de Porto Alegre como se fossem âncoras para uma grande amarração urbana, ele os uniu com quase um quilômetro de faixas de tela fachadeira cor de laranja, criando vetores oníricos no ar que parecem ativar o espaço da cidade como um grande desenho. Trabalhando mais uma vez com lastros e tensões – como se agigantasse suas peças de concreto e tecido esticado –, ele estrutura a paisagem urbana da capital gaúcha por meio de um novo código visual, que parece finalmente dar sentido e unidade ao que antes poderia ser visto como apenas um conjunto amorfo de prédios, com alturas e cores variadas e sem qualquer ordenamento.

Mais uma vez aqui, o trabalho de Túlio Pinto nos leva a pensamentos paradoxais. Nesse caso, embora saibamos que os edifícios é que são os lastros sólidos para ancorar no espaço essas leves linhas de luz, sentimos que a cidade, sem tais vetores enérgicos, é tão desestruturada que, como por absurdo, experimentamos certo temor de que os prédios caiam quando o trabalho de Túlio Pinto for desmontado e as faixas de tela (os vínculos dinâmicos entre eles) retiradas. Pois, na obra artística, são elas os verdadeiros lastros.

[1] Ver Max Bense, Inteligência brasileira: uma reflexão cartesiana. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

[2] Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=rADnp5hfLOk Acesso em: 20 set. 2022.

[3] Em entrevista ao autor em 12 de setembro de 2022.

[4] Na verdade, o vidro é um sólido amorfo, pois sua estrutura molecular não apresenta um padrão de simetria, diferentemente do que acontece com os chamados sólidos cristalinos.

[5] Simone Weil. A gravidade e a graça. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 4.