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2022
Mas o que é que acontece quando cai a grande árvore?
Por
Gustavo Caboco

Nasce mundo, mas não vim falar de tradição.

Isto é um convite à partilha de um campo aberto, não conclusivo, sensível, e a um encontro com as minhas experiências e vivências recentes enquanto artista visual, indígena Wapichana, em que as referências apresentadas pouco perpassam os campos acadêmicos ou habitam a chamada literatura, mas moram mais próximas das linhas-sementes de algodão que vêm das nossas terras do lavrado/ Mata Atlântica em Roraimà-Paranà. Sementes da flor de algodão wapichana que insisto em plantar em outras terras, pois assim nossas mães e avós fizeram. Linhas que precisamos afiar, afinar e fortalecer para tocar as mãos habilidosas que tecem e trabalham essas flores. É que há um abismo entre o que acontece aqui nesta página do mundo da arte e o algodão plantado na terra. Um dos nomes desse abismo é “Arte Contemporânea”, esse fio que se manifesta numa linha do tempo da História da Arte, e, já que insistimos em falar sobre esse tempo antigo, seguiremos fiando. Mas não é do campo da invenção que partimos, mas do campo literal do fiar algodão. Fazer fios: esse é um fundamento da nossa arte e visão.

Esta reflexão que partilho aconteceu num ginásio de uma escola indígena em Roraima, onde a comunidade costuma se juntar para reuniões. Não sei se foi o calor, ou o canto das cigarras que ouvi em janeiro, ou efeito da damorida patamona que tomamos na noite anterior, mas toda essa conversa atemporal dos fios me atinou a visão para perceber uma parente e amiga indígena do povo Baré que tomava seu Guaraná Baré e perguntava sobre tradição e plantio de mandioca para o Tuxaua da comunidade que tomava seu Guaraná Tuchaua. Minha amiga Baré relembrou algumas técnicas com o tipiti que utilizam em São Gabriel da Cachoeira junto de sua família, e no encontro o Tuxaua recordou o tempo antepresente: que cada trançado de fibra é um animal – o tipiti, uma jiboia, por exemplo. Uma professora de fora da comunidade, que tomava seu Guaraná Antarctica, atravessou a conversa com o papo de literatura indígena e da tradição do Guaraná Sateré-Mawé publicada num livro, mas este mundo se tornou cada vez mais distante do presente encontro, pois não havia autores indígenas naquela obra.

 

Com-tradição.

O língua de pirarucu (apelido do filho do Tuxaua), que já havia declarado que não falaria mais de guaraná, pois hoje esse produto é vendido em quiosques nas feirinhas de rua em Manaus, pegou o microfone na reunião e resolveu contar dos encontros que acontecem em Brasília e de uma possível ministra indígena neta de Makunaimî que pode ocupar essa cadeira, num novo ministério indígena, na continuidade da luta por demarcação, na luta por saúde e educação diferenciada, na luta por dignidade, contra o garimpo em terras indígenas, contra o desmatamento, e na luta por recursos para a continuidade da chamada agricultura familiar para manter viva a casa de farinha. Acontece que a reunião acabou de modo abrupto, pois o língua de pirarucu começou a passar mal. Ele, que é devoto de Tuminkery dan, está ruim da vista (praticamente cego), e o médico karaiwe falou que é por conta da diabetes. O Tuxaua, que notou o filho quase desmaiando no meio da sua fala, terminou de tomar seu Guaraná Tuchaua num gole só e colocou o filho na garupa de sua moto para levar pro hospital em Boa Vista. Os devotos de Santa Luzia, padroeira dos oftalmologistas, começaram a rezar em língua wapichana. Mas como é que fortalecemos nossos fios da tradição? Como é que fortalecemos essa visão?

O abismo Arte Contemporânea demora a perceber alguns campos das prioridades e realidades. Esse campo da observação, da fiação, essa manualidade que faz o fuso girar, mora no mesmo campo-baaraz de quem ouve o canto das cigarras e escuta o tempo histórico da transformação. Os fios de algodão continuam a rememorar o dia em que as máquinas de costura chegaram às comunidades junto das aulas de bordados oferecidas por padres e madres e os fios industriais passaram a disputar o lugar do fio fiado por vovó. Mas é que esses fios de algodão atravessaram o tempo e agora fazem parte dos debates de Arte e Esfera Pública. Narram a história de que um dos objetivos Beneditinos foi costurar um deus deles a um nosso (que nem chamávamos assim). Buscaram, em outras palavras, a colonização do nascer e morrer ao instalar a fé em Tuminkery dan.

 

Para onde estamos indo, afinal?

O fio fiado pela vovó e pela criança guarda a memória de observação desse projeto de educação que vê as máquinas de costura como uma ferramenta de domesticação de nossos corpos e memórias. Esse é o campo sensível de observação do dia da criação do trabalho e da construção do que é uma “vida útil” em comunidades indígenas.

 

Nasce nosso vô.

É preciso nos ressituar nos fios do tempo para atravessar o momento em que estão nossos antepresentes. É no tempo dos avôs que aprendemos que quando um avô morre vai uma biblioteca inteira com ele, mas quando esse mesmo avô morre uma segunda vez é que se abre um tempo significativo nas mudanças no mundo das memórias e suas articulações. Uma segunda morte representa uma repaginação estrutural e nesse momento certas vozes e desprendimentos se fazem ouvir. O risco é o apagamento e se perder num som estridente – aquele som que rouba a luz do dia – e é nessa segunda morte do avô que algumas vozes se calam, outras apagam, outras traumatizam uma dor imensurável. É uma estratégia de defesa que algumas populações indígenas vêm praticando: um silêncio para permanecer invisível, que leva a uma morte em dois tempos, uma no ontem e outra no hoje. Os frutos que resistem e que foram colhidos nesse processo são as vozes-kinharyd. Quebrar um silêncio só fortalece quando vem com dignidade, apoio e afeto das redes e seus povos. Se fortalecem ainda mais esses que trabalham suas vozes e cantam suas canções.

Esse tempo do ontem-hoje em que Makunaimî, nosso avô, corta a Grande Árvore. A escassez era quem cantava alto, junto do canto das cigarras, mas quando essa árvore cai, quando ela é derrubada, é também quando estoura nosso “big bang”, pois nossa vida de Wapichana, Makuxi, Taurepang e outros povos indígenas de Roraima nasce desse momento da queda. Nessa explosão-queda da árvore, algo é deixado para trás, um mundo fica para trás. O mesmo modo como muitos animais se comportam: retiram suas peles e a oferecem ao sistema de que fazem parte, como as cigarras e besouros, e assim se transfiguram ou aumentam de tamanho. Desse modo dão continuidade aos seus cantos, sirenes, avisos, feitiços. Há outros mundos que se instalam e outros por vir quando a árvore cai.

 

Nasce mundo.
O começo de tudo.
Nasce vovô, nasce vovô.

É que um pensamento extrativista romantiza toda essa história, individualiza e segue excludente. Singulariza e busca “dar voz” ao “pensador-índio”. Quando falamos do vô Makunaimî nesses palcos da Arte, no abismo Arte Contemporânea, os ouvidos-velhos já colonizados escutaram primeiro a voz literária do “herói” macunaíma. Os olhos, já treinados, visualizam imagens do Grande Otelo, os narizes já trancados têm dificuldade de respirar fora do ar-condicionado modernista-tropicalista. Ler o livro de Mário ou assistir ao filme de macunaíma sem partir do repertório e das vivências dos povos do circum-Roraima, essas vozes-kinharyd, é permitir colonizar uma subjetividade. Imagine esta cena: um sujeito indígena neto de Makunaimî, que vive desde sua infância na presença de Makunaimî, nosso vô, assiste ao filme de macunaíma pela primeira vez em sua vida anciã-adulta e reconhece traços da história original na película. É possível? Sim, e é o que o neto de Akuli Taurepang fez no evento de noventa anos de macunaíma: evento público que aconteceu em São Paulo em 2018.
– Essa cena do Piaimã está errada.

Numa narrativa linear, seria interessante contextualizar quem é Akuli, quem é seu neto e qual sua trajetória, entender que ele relatou ao alemão Koch-Grünberg as histórias de nosso vô Makunaimî, contextualizar quem é esse alemão etnólogo, relatar um pouco mais dos encontros de noventa anos da obra de Mário que ocorreram em São Paulo. São histórias que ainda serão contadas e recontadas pelas vozes e perspectivas de alguns dos povos do circum-Roraima que estiveram presentes nesses debates. Mas se o ouvinte insiste em ocupar um lugar da passividade, vai se perpetuar mais próximo do livro de Mário de Andrade e do bordão “Ai que preguiça” e do abismo Arte Contemporânea do que das vozes dos fios de algodão onde também mora o vô Makunaimî.

 

meu avô em mim,
nosso avô em nós.

Se em “Meu avô em mim”¹ o nosso avô pula na capa do livro macunaíma, em “nosso avô em nós” ele nasce quando reforçamos as coletividades e percebemos que Makunaimî não está só. Seus irmãos Anikê e Insikiran colocaram em conjunto o toco da Grande Árvore, Monte Roraima, na capa dos cinco volumes do livro Vom Roraima Zum Orinoco.² Há uma raiz de Grande Árvore e um fio em cada linha dessas entre-linhas, capas, rolos de filme, cadernos de anotação, línguas e seus tradutores.

Movimentar-se com o nosso avô em nós implica perceber a construção de um grande tear. Com esses fios-registros ele busca construir uma ferramenta de tecer onde é possível experimentar o tamanho da trama a ser realizada. Que o ponto de partida dessa história pode ser a queda da árvore ou pode estar nas tramas de um cesto feito por um neto de Makunaimî do povo Taurepang, por exemplo. Nosso avô, ser da transformação, nos dá a possibilidade de enxergar este tempo dos netos e netas para além da palavra, no gesto. Ele nos mostra a ferramenta do fiar e tecer, do algodão, do fuso e da linha, para que possamos vibrar junto a esses fios para ampliar a nossa trama. Não há verbo que consiga narrar esse princípio e prática. Podemos apenas observar o trabalho que nosso vô nos coloca como prova, e isso nos permite continuar agindo, tecendo estes fios das urgências da memória da nossa casa em comum: a Terra.

 

E o que nosso avô resolveu fazer em Marte se nossa vida é na Terra?

A Terra, esse ponto azul no cosmos, é nossa casa no espaço e é nosso lugar comum. Organismo vivo, Terra é ser pensante que interage com todos os seus filhos e filhas. Mas nós, seres humanos, insistimos em nos colocar nessa relação como um micro-organismo que perturba a vida de rios, florestas, morros, oceanos e seres que partilham deste mesmo terreiro da vida. A criação da dualidade “humano” e “natureza” é o que nos impede de ver que somos nós mesmos quem prejudicamos a nossa saúde quando continuamos a perturbar a saúde da terra. Tudo é consumível, recurso, matéria-prima. Até este texto. A busca pelo consumo, do mesmo modo que movimentou as naus portuguesas, holandesas, inglesas, espanholas na busca por colonizar continentes e recursos, é a mesma nau que busca relação em outros planetas. É a mesma nau que criou seres e pesquisadores extrativistas. Ou o que nós humanos buscamos em Marte?

É que em janeiro de 2022 a Nasa publicou que seu robô Curiosity, que recentemente completou dez anos do seu processo de colonização no planeta vermelho, percorreu uma área batizada de Roraima, evocando a presença do Monte Roraima em Marte.

 

Big Bang.

Se somos poeira das estrelas, essas poeiras são raízes da Grande Árvore. Nós nascemos da queda dessa árvore e assim também se fizeram as estrelas e constelações, pois nessa árvore está toda a vida. Essas estrelas, as de que somos poeira, são parte do Monte Roraima. Mas não vim falar de tradição. Com-tradição. Nosso avô é ser da contradição: vai lá longe para nos lembrar algo que está aqui perto. Se somos seres coletivos, terráqueos, este conjunto de memórias que compõem os ecos e sistemas do ontem-hoje nos coloca mais uma subjetividade com a presença da nossa árvore em Marte: só a escassez nos coloca numa situação de crise e observação do mundo para lembrar de onde somos? Quem sabe essa poeira cósmica das estrelas seja terra mesmo, mas que alguns insistem em chamar de sujeira. Afinal, o que temos retornado à terra?

 

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1. Jaider Esbell, “Makunaima, o meu avô em mim!”. Iluminuras, Porto Alegre, v. 19, n. 46, 2018. DOI: doi.org/10.22456/1984-1191.85241.
2. Theodor Koch-Grünberg, De Roraima ao Orinoco. Resultados de uma viagem no norte do Brasil e na Venezuela nos anos de 1911 a 1913. 3 v. Trad. Cristina Alberts-Franco. São Paulo: Unesp, 2023.

 

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Texto originalmente publicado no catálogo da exposição A Parábola do Progresso, Sesc Pompeia, 2022