“Eu não sei dizer
nada por dizer
então eu escuto
se você disser
tudo o que quiser
então eu escuto”¹.
costurar, mover-se: como contato, rastro
As definições de movimento suscitam muitos impasses: a simples fluidez de um processo, as marcas que os acontecimentos e os sujeitos neles implicados deixam, o encadeamento de gestos e como eles atravessam o corpo. Tentações teorizantes à parte, talvez perceber o mover-se das coisas seja admitir que se trata de um ritmo imprevisível e injustificável, no qual é preciso querer perder-se, sem esforçar-se em delimitar um fio de lógica e coerência no movimento – ir e deixar ir.
Incentivada por essa percepção, Guga Szabzon costura, move-se na pele do tecido. Constrói uma linha que desemboca em outras e na falta de rumo, contiguamente. Isto é, a linha ocorre modificando-se e deixando rastros nada óbvios. A artista demarca relações, muda as cores também. E vai saltando de um tecido a outro que são seus territórios. Sua linha é rio sem destino.
Assim, mover-se como procedimento é como a artista distancia a linha de uma mera noção de limite ou contorno, égide sobre a qual o desenho obriga a linha a sobreviver. A linha de Guga é brincante, fugidia e, por isso mesmo, aventureira. Sua linha não se cansa de vagar e correr riscos. Ela pode findar-se, separar-se, bifurcar-se e até mesmo abandonar a ideia de ser linha, contendo-se. Sem freio, pode errar e frustrar a continuidade do movimento (e isso também é movimento). Sua linha é dança.
A linha de Guga Szabzon sobrevive de cada um de seus pontos e mudanças de rota em seu percurso. Pode ser percebida como um projeto que se abre ao encontro com a ausência, com a encruzilhada de outras tantas linhas, para adiante percebe-se em fragmentos que debandaram sem avisar. Sua linha não se repete e, em sua incerteza, caminha para acontecer com o tecido. Depois escapa e deixa tudo cheio.
um pequeno canto do mundo onde tudo que é vivo um dia pode emergir
Começar um trabalho é como destravar a língua para confessar um erro imperdoável. Cortar o tecido, colocar a máquina em movimento. Isso leva tempo: “todos os dias. (...) Mas tem dias que não dá”[2]. A agulha perfura, faz os caminhos, enquanto o tecido vai sendo girado em seu eixo. E ainda tem o verso. Leva tempo para que tudo aconteça.
O ateliê de Guga Szabzon é um lugar de enfrentamentos: as paredes brancas chamam para a conversa, os tecidos cortados e seus fiapos estão sempre avançando, jogando-se, oferecendo-se, e o buraco no chão mole assombra quem pisa na sala da frente. O ateliê é o seu lugar para ir longe demais e sempre olhar para trás. Ali, uma tempestade de palavras, de histórias, de mapas, de incontáveis linhas escorrem e se grudam nos tecidos e vão surgindo como visualidades fragmentadas. Guga parece operar por montagem, sobreposição, junção, escutando e atraindo muitas vozes que não a deixam repousar. Ainda assim, o ateliê é um canto de efervescência, mesmo diante de tanta dor.
O excesso de ordem se aplicado a esses retalhos de história que figuram nos trabalhos de Guga os submeteria a uma clareza insípida, embora tudo seja muito simples. Rio pode ser ou conter pedra. Pedra pode ser ou conter rio. A história do Galo de Fogo está nos esperando atrás da porta. Um leste inventado aponta um caminho entre “você” e “eu”. Enquanto um Planeta Saturno promete: “tá tudo bem”. Não é possível contar todas as linhas, todos os pontos, nem as palavras. Tem erro em tudo, ela garante. Guga continua seu trabalho de ateliê. Para ela, é preciso estar muito tempo ali, construindo ritmo mais do que qualquer outra coisa. É um ritmo de lugar e de corpo, de corte, de costura, de prego na parede, de monta, olha, troca de lugar. O que faz parecer que tudo está fresco, quente, sempre começando. Os números não conhecem esse ritmo, nem adianta contabilizar com os dedos.
antes que o dia nos sufoque
Uma palavra pode romper o bem-estar. Pode atrapalhar o bom censo. Cabem na palavra, ao mesmo tempo, o horror do desconhecido que não se explica e a certeza do que parece natural, ordinário, que esteve por perto desde sempre. A glória e o lamento do ser humano, essa é a grande coisa de ser palavra, diria Giorgio Agamben. A presença da palavra nos trabalhos de Guga Szabzon são evasões da labuta da escrita, não foram feitas para ser texto, tampouco literatura. Perecem pertencer a um estágio anterior de forma (e não confundir isso com ingenuidade). São mais a pronúncia, a materialidade do impulso verbal, quando uma bomba explode na boca e o estrondo chega ao outro, numa interface que faz oscilar o tempo da escuta, o lugar de entendimento, o gesto de esculpir sua superfície de significados.
O ritmo e o fluxo das palavras nesses trabalhos acompanham a materialidade dos tecidos, convivem com linhas, com texturas, penetrando sem barreira as composições. Entre o desabafo, invenções de nexos da imaginação, reminiscências da memória e de acontecimentos biográficos, essas palavras embaralham a evidência de seus significados e das coisas a que poderiam se remeter para voltar a ser uma armadilha.
Tratam-se de uma espécie de registro de um corpo que vibra e que se desabriga para experienciar um maravilhoso perigo. E isso vai criando texturas no corpo que vão sendo cerzidas e transplantadas com a mesma intensidade de seu impactos primeiros. Guga costura a palavra para semear inquietude e fascínio, ou, quem sabe, para estar junto a um dilema.
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1. Trechos da música “Fala”, última faixa da disco Secos & Molhados, da banda Secos & Molhados, lançado em 1973. A letra foi composta por João Ricardo e Luhli e interpretada por Ney Matogrosso.
2. Trecho de anotações do caderno da artista Guga Szabzon.
Milão, Itália
Porto Alegre, Brasil
Porto Alegre, Brasil
Porto, Portugal
Brumadinho, Brasil
Buenos Aires, Argentina
Cambridge, Massachusetts, EUA