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2023
Os enigmáticos monstros de Henrique Oliveira
Por
Antonio Gonçalves Filho

Referências orgânicas como o corpo humano são evidentes na obra de Henrique Oliveira, mas sua arte híbrida envolve ainda a ocupação espacial com a epiderme de criaturas enigmáticas que guardam a fisionomia de monstros surrealistas (e uma imagem sedimentada pelo imaginário cinematográfico é a do animal disforme que surge no epílogo da obra-prima de Fellini, A Doce Vida, identificado como uma alegoria da natureza transumana que tanto perturba o protagonista do referido filme).

Os monstros podem surgir em qualquer lugar, mas ganham em dimensão quando colocados em ambientes fechados (como a baleia empalhada num container no filme As Harmonias de Werckmeister, do húngaro Béla Tarr, ou o homem-mosca confinado no laboratório em A Mosca, do canadense David Cronenberg).

Se Hélio Oiticica foi uma primeira referência nas instalações de tapumes de Henrique, um comentário sobre a precariedade das construções na periferia dos grandes centros urbanos, o interesse de Henrique por criaturas gulliverianas nasceu de seu contato com a geração seguinte, a dos anos 1980 (Nuno Ramos, que foi seu professor, e Ângelo Venosa).

Também tiveram impacto no processo inicial do artista (sua primeira individual é de 1998) as pinturas “impasto” de Frank Auerbach, os processos alquímicos de Tunga, a tensão entre materiais das peças de Ernesto Neto e a reciclagem ecológica de Krajcberg. A pintura de Auerbach no período dirigia seu olhar para detalhes da paisagem cotidiana que passavam ignorados pelos transeuntes.

Sobre a obra de Auerbach, o que mais interessava ao artista brasileiro é como os detalhes do ‘impasto’ podem virar uma ‘paisagem’ quando ampliados por uma lente de aumento. Ele foi assumidamente uma “referência cara” para os seus Xilempastos de madeira.

E, nas palavras de Henrique, seus Tapumes, executados com materiais reciclados dos tapumes de construções, eram igualmente obras que obstruíam o olhar, mas se tornavam o objeto da visão dos espectadores.

Os seres enigmáticos desta exposição nascem de esboços no caderno de desenhos de Henrique. Antes nasciam como formas tridimensionais da superfície das pinturas. Agora dispensam esse veio cromático que emergia da estrutura conforme as formas orgânicas sugeridas por essas peças.

São trabalhos de grandes dimensões que partem de microformas transfiguradas em macroformas, instalações orgânicas que remetem tanto a criaturas antediluvianas e do espaço como a tumores (ele é um aficionado de livros médicos, em especial os que tratam de doenças da pele e carcinomas).

Além dos livros médicos, a ficção científica marca, ainda que de forma indireta, a morfologia das peças nesta exposição. É possível identificar nos trabalhos mais recentes uma tênue conexão com as criaturas monstruosas do suíço H. R. Giger (1940-2014), em especial as do filme Alien, e, mais remotamente, com criaturas da distópica literatura cyberpunk. Contudo, a fonte primordial dessas obras é o legado deixado pelo surrealismo e Freud.

Há nessas pantagruélicas criaturas de Henrique um erotismo latente também presente nas esculturas de Louise Bourgeois, que considerava a arte uma espécie de psicanálise alternativa, outra porta de acesso ao inconsciente.

A exemplo de Louise Bourgeois, Henrique é familiarizado com a sintaxe psicanalítica, a despeito de se referir com pouca frequência a ela, ao contrário de Louise Bourgeois. Embora fizesse uso das teorias freudianas, Bourgeois defendia que Freud não era de grande ajuda para quem faz arte, considerando que ser um artista envolve necessariamente sofrimento (sem acesso à cura, afirmava a artista, após 30 anos de análise).

Não se encontra no atual trabalho de Henrique uma correspondência direta com as conturbadas relações de Bourgeois e a figura paterna que a levaram a assinar obras como A Destruição do Pai (1974), marcada pela castração simbólica registrada em várias de suas esculturas. No entanto, há uma curiosa evocação das formas arredondadas que aproximam os testículos da referida obra da escultora às sementes agregadas ao “monstro” criado por Henrique na peça maior instalada na exposição, envolta em folhas de palmeira como se fossem os ovos dos “xenomorfos” de Alien, criaturas do espaço que se desenvolvem como répteis.

Já na primeira exposição individual do artista na Millan, em 2012, Henrique exibiu a obra Condensação, cujo título fazia referência a um termo freudiano para descrever o trabalho dos sonhos (condensação e deslocamento).

Há nesse novo trabalho tentacular de Henrique um apelo erótico tão forte (mas não tão explícito) como o da sua instalação A Origem do Terceiro Mundo, apresentada na 29ª Bienal de São Paulo (2010), em que o público entrava por uma fenda no formato de uma vagina e seguia por um túnel numa alusão metafórica à tela de Courbet (A Origem do Mundo, de 1866), que mesmo Lacan, que foi proprietário da obra, relutava em expor.

Parece claro que a obra de Henrique propõe igualmente um enigma de caráter freudiano, não descartando nenhuma alusão sensual, a despeito de não ser um “penetrável”. Trata-se de uma obra que exige uma chave fenomenológica, cuja aparição no mundo supera o antagonismo entre imagem e matéria, reforçando a percepção como ponte para decifrar o “enigma”.

Impressiona também a estrutura orgânica vertical da exposição, que expõe a pele urbana como uma revisitação de seu Bololô (2011) numa forma mais ordenada e uniforme, mas com a mesma força que envolve a arquitetura como se fosse um fóssil emergindo das profundezas. Entre monstros e fósseis, Henrique surpreende ao apontar novos caminhos para a arte tridimensional brasileira, como Ângelo Venosa o fez no passado.

Uma fonte importante para esta nova exposição de Henrique foi um livro de Juan Luis Arsuaga, O Colar de Neanderthal, em que o autor e paleoantropólogo espanhol descreve um mundo imaginário de 100 mil anos atrás no norte da Espanha, em que nossos ancestrais caçavam animais usando pedras lascadas como ferramentas. O visitante irá encontrar na mostra alusões a mamutes, vulcões e fogueiras. Naturalmente, sob a ótica de um artista contemporâneo e sintonizado com sua época. Boa viagem na máquina do tempo.