“Pardo é papel”, individual de Maxwell Alexandre, é recebida pelo Museu de Arte do Rio e pelo Instituto Odeon como reafirmação da vocação que o MAR conquistou em sete anos de existência. Enfrentar o espelho, se reconhecer, escutar, afirmar o que interessa e prosseguir. Tornar-se. Essas são tarefas para um Museu que se coloca em diálogo com uma cidade e sua vizinhança. Quais heranças queremos fortalecer?
Fortalecimento, como nos explica Joice Berth, é um dos termos escolhidos por teóricos em ampliação ao tão alardeado “empoderamento”. Empoderar é trazer para si e para coletividade, devolver as tarefas de reconstrução de parte de uma sociedade que subalternizou, relegou às margens, oprimiu, escravizou. Portanto, resta-nos instrumentalizar a emancipação, o que a produção de Maxwell procura fazer, afirmar as potências estéticas e políticas de gestos cotidianos que podem vibrar junto ao Museu de Arte do Rio e, jamais, ser cooptados. Vibrar junto, sublinhamos. O encontro entre Maxwell Alexandre e o MAR negocia certos termos dessa tentativa de consonância, um museu voltado a um público amplo que tem na troca com a cidade, no diálogo entre arte e cultura, seus pilares de sustentação.
Maxwell Alexandre, jovem pintor carioca, morador da Rocinha, elabora, então, uma reflexão sobre uma cor, fato mais do que recorrente na história da arte, de Robert Rymann a Barnet Newmann, e vê na forma e na cor elementos de sua própria linguagem. Porém, aqui, o “pardo” é ressignificado pelo artista, levando-nos a outras direções. Ao produzir autorretratos sobre papel pardo, MW, sigla usada pelo artista, passa a perceber que estava, também, diante de um ato político: pintar corpos negros sobre o papel, em cujo nome, “pardo”, também se caracterizava o distintivo racializado. Com isso, os estigmas são assumidos e revertidos. A cor da pele negra, confundida com a cor do papel, retorna como condição de resistência, como reação: “pardo é papel”. Congrega-se, assim, arte e cultura, forma e subjetividade em devolução aos conceitos e preconceitos.
O povo negro e o retrato configuram um importante capítulo na história da representação e da representatividade étnica na cultura brasileira. O século XIX foi um momento em que se reconfigurou a ideia de retrato, estimulada pela invenção das máquinas fotográficas e a representação de não-europeus. O Brasil colecionou e patrocinou missões e viagens naturalistas para registrar tanto as particularidades da natureza tropical, quanto povos e sujeitos que viviam nas cidades e nas florestas. Fetichizações de todos os tipos foram produzidas em cartões postais e pranchas que corriam o mundo. A cidade do Rio de Janeiro, particularmente, figurou em gravuras de Jean Baptiste Debret e Johann Moritz Rugendas que contribuíram para uma historicidade referente à vida na metrópole, mas, em contrapartida, estigmatizaram o anonimato dos corpos, servindo à corte, mais do que aos retratados. O resultado destas empreitadas foi marcar, estigmatizar, alegorizar traços físicos, fenótipos que ampliaram sua penetração na invenção de um imaginário nacional, na busca por uma fictícia brasilidade que chega, na pintura, à Negra de Tarsila do Amaral. Isto acaba colocando as populações indígenas e afrodescendentes muito distantes do retrato e mais próximas aos estigmas de uma alegoria. O que se configurou foi a criação de uma ideia de raça, de uma fábula, como nos termos de Roberto Damatta, em que brancos, negros e indígenas viveriam em suposta “democracia racial”, marcando o Brasil com uma ampliada paleta tropical. Mas, tudo isso é uma falácia, as leis contra a opressão das populações negras e indígenas permanecem atrasadas ou nulas. As periferias mantêm-se como local de maior contingente de afrodescendentes. Com isso, a junção entre etnicidade e classe forja uma das mais fortes bases daquilo que se nomina “interseccionalidade”, ou seja, não basta marcar a periferização de vozes por um único fator, já que tudo se agrava na soma de opressões interseccionais em que se encontram distintivos de classe, etnicidade, gênero, moradia, entre outros.
Na pintura brasileira, contudo, neste mesmo século XX, outras vozes se fizeram ouvir em amplificação dificultosa – Heitor dos Prazeres, Maria Auxiliadora, Djanira. Assim como Maxwell Alexandre, tais artistas exerceram, em suas épocas, o autoproclamado “lugar de fala”, pintaram o que viviam, viviam onde pintavam. Com isso, ao olharmos pinturas como Meus manos, minhas minas, meus irmãos, minhas irmãs e meus cães | da série Pardo é Papel, 2018, revisitamos cenas como as do Morro da Providência, de Heitor dos Prazeres. Vemos a população negra também com suas indumentárias de trabalho e festa, no cotidiano urbano ou em reuniões “aquilombadas” de terreiro e samba. Se fizermos uma digressão, também podemos pensar na Rocinha de Maxwell como o Harlem de Plamer Hayden, pintor contemporâneo de Heitor dos Prazeres, em que a população afrodescendente da sociedade norte-americana se esbaldava em um cotidiano de luta e diversão, ostentando chapéus, luvas, carros de passeio, trabalhando, criando filhos, indo à igreja.
Em Maxwell Alexandre, vemos uma diferença, obviamente um componente de época, suas cenas são marcadas por uma cultura espetacularizada que ostenta imagens como se destinadas a um videoclipe. Há muita marcação cinematográfica na construção épica das pinturas de MW: primeiro e segundo planos, gestos retumbantes, closes, poses, vogues. Percebemos cenas como as do cinema de Beatriz Nascimento, Spike Lee, Zozimo Bulbul, em que Ícones negros empoderados por jóias e ornamentos que, muitas vezes, funcionam como anagrama, ostentando as iniciais de um nome, abrem a porta de carros de luxo. Em outro sentido, a pletora de cenas desnaturaliza o lugar, não estamos diante de uma paisagem, mas, sim, de recortes, todos juntos: capas de disco, trabalhos de arte, incêndios em museus. Não há “coetaneidade”, para pensarmos como Johannes Fabian, ou seja, o resumo sobre a cultura do Outro não coincide com a vida vivida. Estamos, na pintura de Maxwell Alexandre, ao contrário, no avesso, num presente simultâneo, vibrando cada fato em lugares distintos, o que corrobora o comentário crítico, a arte. Basta juntamos uma a outra cena e oferecermos o enredo, deslindando outras narrativas, que veremos o comezinho misturar-se ao midiático, a vida corriqueira se instagramar, fato que as mídias digitais fazem, hoje, com a sociedade.
Pensar o retrato é um fato a que Maxwell Alexandre se dedica. Ali, vemos personagens conhecidas, Elza Soares, Marielle Franco, Nina Simone, Bispo do Rosário, Dalton Paula, Antonio Obá, Beyoncé, Jay Z, Lyz Parayzo. Personagens que de modos variados escrevem a história do “empoderamento”. As relações configuradas por MW nas cenas das pinturas se adensam, justamente, no jogo entre reconhecimento midiático, cenas comuns na TV, no Youtube, nos Memes, no Facebook e no Instagram, e outras cenas, do cotidiano da Rocinha, das práticas de subversão dos valores capitalistas e do excesso de signos do dinheiro; a ostentação. Lembremos que o capitalismo configura um lugar para o excedente, o lucro. Contudo, em uma camada mais cool, desinteressada, blasé, estas marcas do excesso caminham em suave discrição como prerrogativa da inventada elegância, da indiferença, a “nonchalance”. Nas pinturas de Maxwell Alexandre, o excesso, o luxo, a festa se dão a ver com sublinhada carga de exibição, tudo está sob holofotes ou à luz do sol, das limusines às lajes. Maxwell Alexandre pensa a arte global.
“Descoloração global” é a proposta do artista realizada nos pilotis no MAR. Uma ação que já captura as curtidas no Instagram em alto compartilhamento. Com isso, não somente nas representações presentes nas pinturas do artista, mas no uso do sistema de arte, nos caminhos traçados pelas mídias digitais, tratados como táticas de “guerrilha” contribui-se para acirrar o empoderamento. Mostra-se, então, coragem para deslocar uma prática cotidiana, feita há algumas décadas, nas praias do Rio de Janeiro, e reapropriadas pelas favelas, em descolorar os pelos do corpo. Um tom de colorismo que, obviamente, tem na impossibilidade biológica sua marca, mas que funciona como mecanismo de crítica, devolução da alteridade e da etninicidade, localização do preconceito para que se possa revertê-lo, achincalhá-lo, criticá-lo e gozar das mesmas benesses, quem disse que não se pode ser louro? Critica-se, de outro modo, a cultura carioca, a “gema”, termo destinado aos que seriam, de fato, pertencentes à cidade, como a praia, o surf, matrizes da citada “nonchalance”, de certa indiferença que confere “ao natural”, biológico, todo privilégio, mas que, sempre foi produzido, inventado, descolorido. Por que protagonizar loirice de Marilyn Monroe e da garota de Ipanema, esquecendo a de Beyoncé? Por que tantos ícones brancos? Em outro caminho, percebe-se a fluidez de gênero, não há mais uma divisão binária para o tingimento dos cabelos, há muito tempo.
A cor, superfície última, efeito de pele, tingimento em melanina, em nada justifica o julgamento. Estamos atrasados em proclamar a liberdade da cor, se pardo é papel, preto e branco são cores da igualdade, jamais da diferenciação. Isso precisa ser gritado, nos termos de MW, “Éramos as cinzas e agora somos o fogo”, atravessamos os incêndios do racismo, o desmantelamento da cultura e dos museus. Desejamos “fogo”! Muito fogo em nossas vidas, não para a destruição, mas para o reprocessamento das formas de afeto, dos lugares, daquilo que Agamben nomeou “com-divisão”, pois dividir, somente, gera desigualdade social, o grande exercício é dividir junto, “comdividir”.
Contudo, como nos alerta MW, “Não foi pedindo licença que chegamos até aqui”, pintura em que num primeiro plano temos uma imagem associativa da Santa Ceia, com a figura central vestindo um uniforme escolar. Porém, todos os apóstolos estão de Djellaba, roupa usada no Norte da África e no Oriente Médio, sem divisão de gênero. No canto superior esquerdo da pintura, a frase “um mundo a sua medida”, grande utopia da democracia e do humanismo. Qual será essa medida? O homem vitruviano era branco, e se quis manter como padrão. Um mundo a sua medida é, antes de tudo, o vazio, um espaço para caber as diferenças. A cena central, como em uma pintura renascentista, mostra uma Madona negra com o menino nu, negro. Todo o entorno, a violência, o canibalismo, a guerra, os banquetes, ferozes hienas africanas acorrentadas, como as registradas nas fotografias da Nigéria, de Pieter Hugo. Porém, uma narrativa a tudo conecta, a disputa entre a cor rosa e a cor marrom, junto ao pardo do papel que sustenta, em superfície, todas as tintas e histórias, dois produtos capitalistas que jogam com o desejo infantil são as presenças mais constantes na exposição: Danone e Todinho. A criança que deseja e vê, ao seu redor, a impossibilidade, o jovem que, mesmo desejando, não se contenta em reproduzir o que está posto, talvez, estes, os dois grandes verbos de Pardo é papel, desejar e contestar.
Um Museu, como o MAR, ao trazer a itinerância “Pardo é papel” ratifica os modos, sensações e lugares com os quais nos interessa dialogar: a escola, a diversão, o museu, a laje, a sala familiar, a rua, a igreja. Tudo isso se apresenta nas pinturas do artista. O Museu, então, se repensa, enquanto signo de distinção, onde a inclusão deve ser meta. Lugar historicamente de ostentação de bens, o museu que nos interessa continuar deve reverter a periferização, transformando-a em autoestima. E, sobretudo, aceitar a pletora de cores já mais do que vivenciada pela cidade que se repensa a cada dia, na luta, no azul celeste dos uniformes escolares e das padronagens das piscinas, onde nos refestelamos aos Domingos.
Pensar museu, pensar cidade.
São Paulo, Brasil
Rio de Janeiro, Brasil
Le Puy-Sainte-Réparade, França
Gwangju, Coreia do Sul
Instituto Tunga
Boa Vista, Brasil
São Paulo, Brasil
Essen, Alemanha
Rio de Janeiro, Brasil
Nantes, França