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2018
Sístole e diástole da paisagem
Por
Angelica de Moraes

A percepção imediata ao se entrar na exposição individual de esculturas de Túlio Pinto em Garzón é que todas as obras, de diversas soluções construtivas, convergem para evidenciar linhas de tensão em equilíbrio. Há nesse conjunto um duplo movimento virtual: diástole e sístole, que dilata e contrai nossa percepção de limites, espaço e tempo. Linhas reais ou virtuais sustentam pesos, se ancoram em paredes, deslizam e deformam reflexos gráficos em superfícies transparentes, rebatem o olhar ou o absorvem.

Todas as obras se referem a um jogo interno de forças estabelecido nelas mesmas e delas com horizontes absolutos, inalcançáveis ou ideais, muito além delas, conjuradas em refrações ou memórias. São parte de um todo regulado pelas leis do universo que está também dentro de nós.

Desta forma, podemos também sustentar que há nessas esculturas uma potência de análise do gênero paisagem e de como ele pode se apresentar e ser reposicionado e expandido na contemporaneidade. É uma paisagem mental, introspectiva, que toca os limites do horizonte e dos fenômenos naturais. Uma paisagem anti-ilusionista e anti-narrativa, que reapresenta, desconstrói e analisa os significados atuais e permanentes da nossa relação com a natureza.

Com um mínimo de meios e um máximo de resultados,Túlio nos faz refletir sobre a trama de resignificações poéticas que podem derivar da mecânica dos corpos submetidos aos princípios da Física. Assim, ele nos conduz para um forte sentimento de natureza e pertencimento. A gravidade terrestre surge como elo comum de nossa inserção no todo da existência das coisas, de nós mesmos e do outro. Antagonismo de forças a exigir resiliência e reação, mas também aproximação e convívio. Um convívio de equilíbrios delicados, provisórios, negociados.

Não por acaso, o artista admite que boa parte das idéias que deram origem a essas esculturas foram pensadas durante uma experiência de deslocamento a pé que fez pelo interior do território do Uruguai, em 2013, quando realizou a residência artística Sala Taller III no Espacio de Arte Contemporâneo (EAC, Montevidéu). Túlio percorreu os vetores que traçou sobre a cartografia para simular o prolongamento, até a região de fronteira uruguaia, dos pavilhões do que antes foi uma prisão (Cárcel de Miguelete).

Esse perambular artístico foi registrado em rápidos esboços de desenho de locais e suas coordenadas geográficas (latitude e latitude), em cadernos de campo, quase como um experimento científico. Foi uma árdua jornada em que percorreu aproximadamente 1600 quilômetros em três meses. “Coloquei meu corpo no território e fui esculpido por essa paisagem que me recebia” conta ele.

A escultura, por paradoxal que possa parecer (já que costuma ser identificada com coisas fixas e imutáveis), talvez seja uma das ferramentas mais eloqüentes para se pensar as características fluidas, velozes e contingentes do mundo atual. Ao romper a tradição que apontava para as formas estáveis que visavam o eterno, ela se reinventou na construção e desconstrução derivadas das vanguardas russas do início do século 20. Chega à segunda década do século 21 em diálogo fecundo com essa tradição, expandindo-a.

A obra de Túlio Pinto se insere nessa linha de tempo com riqueza e eficácia de diálogos. É como podemos observar a sua concisa e sutilíssima peça “Vetoriais: situações de canto”, em que uma haste vertical de aço comprime uma bolha de vidro soprado contra um ângulo de parede. Há aí uma releitura original das lições do escultor russo Vladimir Tatlin. Este, por sua vez, ecoava na escultura “Contra-relevo angular” (1915) a tradição russa de situar em ângulos de parede os ícones religiosos de culto doméstico. Coisa que também foi evocada por Malévitch quando colocou seu “Quadrado negro sobre fundo branco” (também de 1915) bem ao alto de outro ângulo entre paredes, na famosa exposição individual que o situou nos livros de História da Arte.

Ainda podemos ver um desdobramento dessa tradição nas lâminas de vidro (“Nadir X, Y, Z”) que Túlio distribui pelo espaço em ângulos retos e inclinados em relação aos planos da parede e do chão. Sistema estabelecido apenas pela pressão da corda tensionada sobre as laterais dos vidros, por meio de pesos e contrapesos irradiados desde um conjunto de pedras. Desse modo, ele cria uma conjunção de linhas reais e virtuais (espessura do vidro e sombra da corda). Quase como relógios de sol, as peças se constituem em armadilhas para a luz natural que inunda o local e desenha sombras/ponteiros nelas. Uma situação que, aliás, potencializa toda a mostra com diversas possibilidades de leitura da espacialidade do entorno, transformado pelas sombras/linhas que, com o passar das horas, escorrem e projetam-se de uma a outra obra, atravessando-as.

Também na escultura construtiva produzida no Brasil há pontos de contato que podem ajudar na leitura da contribuição trazida por Túlio a essa expressão visual. Talvez o mais emblemático disso seja observar como a operação de corte e dobra levada à chapa de aço corten por Amilcar de Castro identifica uma época em que os gestos definitivos ainda cabiam em um mundo que não tinha colocado em xeque, como agora, o quanto estamos submetidos às flutuações do momento.

A mudança de percepção do tempo ocorrida na contemporaneidade já não sustenta gestos heróicos nem permanentes, parece apontar a obra Athar #2, de Túlio Pinto. O aço agora comparece em três vigas que mantém seu formato industrial original. A intervenção do artista se resume a articular o equilíbrio entre elas ao inserir uma bolha de vidro soprado no ângulo superior do tripé e ancorar suas extremidades inferiores às paredes. Uma vez mais se demonstra aqui o gesto artístico em total sintonia com as características dos materiais: o vidro soprado “copia” os relevos das vigas, ajudando a fixá-las em equilíbrio e inserção com a arquitetura do espaço.

O vidro soprado cumpre a função de respiro, coágulo de tempo depositado sobre o que está planejado industrialmente para a duração (o aço). É também índice de que não há mais gestos absolutos e que “Tudo que é sólido desmancha no ar”, como nos fez ver o livro de Marshall Berman, de igual título. A dimensão espaço-temporal da atualidade é extenuante, exige persistência e clareza. Como o vidro ou o cristal. A fragilidade é enganosa, comprova a peça “Cumplicidade #8”, em que um pesado cubo de aço pousa uma de suas arestas sobre um vidro soprado que o sustenta como se flutuasse no ar. Em outra peça, “Cumplicidade #15”, bolhas de cristal não só estão na base como se inserem entre duas pequenas secções de vigas de aço, tornando absurda a sensação de leveza.

Construção ainda mais arriscada acontece em “Nadir #3 ”, conjunção improvável entre duas vigas sustentadas em equilíbrio aéreo por uma bolha de cristal e uma lâmina de vidro apoiada em uma pedra, no chão. Aqui acontece um dos momentos de inversão mais radical dos conceitos de resistência dos materiais: é o etéreo vidro que sustenta as densas peças de aço feitas para suportar grandes pesos. Vidro ancorado na pedra, como a comunicar céu e terra a sonhos difíceis de sonhar.

As pedras são protagonistas ou coadjuvantes freqüentes na produção atual do artista. Esse fascínio pelo material o acompanha desde a infância, quando as examinava longamente, de perto, pequenas, entre as mãos. Há nelas extenso vocabulário de situações de massa e peso ao mesmo tempo em que proporcionam uma variedade de conceitos para acionar diálogos com o natural. Material identificado com a arte povera, é índice poderoso de paisagem. Funciona também como índice de tempo. Na aparente inércia, é atravessada de forças físicas que a fixam no chão e a identificam com os atos de resistência. É ação em potência. Associada ao gesto rápido da mão, pode ser arma e protesto. Acumulada em grandes quantidades, pode ser abrigo.

Os fenômenos naturais, como as pedras, parecem ser das poucas verdades (quase) imutáveis que dispomos. Túlio Pinto nos faz pensar sobre isto e muito mais, ao escolher a Arte como uma atitude de investigação do mundo em experiências tão abertas e vivas como os elementos em tensão, potência e risco que reúne para criar suas paisagens mentais do agora.

 

*Texto para catálogo da exposição na galeria Piero Atchugarry, Garzón, Uruguay (2018).