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2022
Testemunho
Por
Maxwell Alexandre

MUSEU DE ARTE DO RIO

Em maio de 2017, num desses dias de ateliê em que você vai sem saber muito o que fazer, eu pintei três autorretratos em folhas de papel pardo que estavam perdidas por ali. No dia seguinte, quando olhei as pinturas penduradas na parede, percebi que realmente havia uma sedução estética muito potente, mas somente quando fui fazer a quarta pintura me dei conta do ato político e conceitual que eu estava articulando ao pintar corpos negros sobre papel pardo, uma vez que a cor parda foi usada durante muito tempo para velar a negritude.

A designação “pardo” encontrada nas certidões de nascimento, em currículos e carteiras de identidade de negros do passado foi necessária para o processo de redenção – em outras palavras, de clareamento – da nossa raça. Porém, nos dias de hoje, com o crescimento dos debates, a tomada de consciência e reivindicações das minorias, os negros passaram a projetar sua voz, a se entender e se orgulhar, assumindo seu nariz, seu cabelo e construindo sua autoestima por enaltecimento do que se é, de si mesmo. Esse fenômeno é tão forte e relevante que o termo “pardo” ganhou uma conotação pejorativa dentro dos coletivos negros. Dizer a um negro hoje que ele é moreno ou pardo pode ser um grande problema.

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Tão saudável quanto um carinho foi a primeira pintura em grande formato que fiz, cobrindo toda a parede de meu ateliê com papel pardo. Fiz isso quatro vezes e no final juntei tudo com fita crepe, formando uma folha única, de 320 x 480 cm.

Na ocasião estava preparando um trabalho para a exposição Carpintaria para Todos na Carpintaria, braço da Galeria Fortes D’Aloia & Gabriel, no Rio de Janeiro. A exposição coletiva era aberta para qualquer artista, por ordem de chegada até que se enchesse por completo o espaço expositivo. No comunicado online feito pela galeria eram informadas as medidas dos portões, para evitar que artistas levassem obras que não pudessem adentrar o lugar.

A obra marcava o começo da série “Reprovados”, que surgiu para tratar de questões mais ácidas da vivência preta, como o conflito da comunidade com a polícia, a dizimação e encarceramento da população negra, a falência do sistema público de educação.

Mesmo que esse tenha sido o primeiro momento em que minha obra entrava em contato com um grande público, o início de “Pardo é Papel'' se deu pouco antes, quando eu estava pintando pequenos fragmentos de papel pardo que eu colecionava dos laboratórios de moda na época da faculdade. O material é muito usado pelos alunos no processo de criação de modelagem de roupas. Mas “Reprovados” é amargo, e por isso fui adiante com uma pintura dessa série para o contexto da Carpintaria. Eu não queria levar uma obra de “Pardo é Papel” que falasse de bonanças para uma galeria renomada de uma área abastada da zona sul. Eu precisava colocar um problema urgente ali, e por isso a primeira pintura em grande formato é de “Reprovados”, mas utilizando o papel pardo como suporte, na estratégia de conseguir ocupar o maior espaço possível na mostra sem me preocupar com a possibilidade de o trabalho não passar pelos portões da galeria, uma vez que eu poderia entrar com ele dobrado debaixo do braço.

Quando desdobrei a pintura dentro da galeria e viram o tamanho dela aberta, os organizadores a princípio quiseram vetar, pois consideraram a obra grande demais, e que ocuparia bastante espaço, deixando vários outros artistas que estavam na fila desde cedo sem a chance de participar também. Mas depois, olhando novamente, reconsideraram e optaram por tirar o texto curatorial da mostra para instalar meu trabalho. Essa pintura acabou sendo muito bem-sucedida, gerando uma comoção e iniciando meu contato com o circuito e mercado de arte.

Embora existam distinções de abordagem entre as duas séries (“Reprovados” e “Pardo é Papel”), muitos símbolos tornaram-se comuns em ambas, estabelecendo um glossário com numerosas camadas e interpretações dentro do corpo de trabalho. Com isso as narrativas foram ganhando complexidade, e meu interesse em manipular símbolos e marcas de status e poder dentro da favela – como as famosas piscinas Capri que marcaram minha infância, o logo da Prefeitura do Rio, a bandeira do estado do Rio de Janeiro, o brasão da Polícia Militar, Danone, Toddynho, entre outras – foi me permitindo criar uma mitologia própria a partir desses elementos emblemáticos na vivência do morro e da cidade como um todo.

A pintura é um lugar em que posso manipular essas marcas que são entidades e moldam as vidas das pessoas, ditam comportamentos, se impõem e invadem histórias e intimidades. Mas no campo fictício da arte, essas estão sujeitas ao artista, que tem o poder de gerar novos questionamentos simplesmente deslocando-as para o plano pictórico, atribuindo-lhe um novo tempo e espaço.

Junto disso, eu contava com um acervo pessoal de fotos de álbuns de família, imagens das redes sociais, de famosos e até publicitárias para construir um léxico que me permitisse elaborar cenários reais e especulativos.

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Pós-Carpintaria, quando voltei ao estúdio para retomar a série “Pardo é Papel”, achei pertinente assumir esse formato de pintura monumental, para intensificar o diálogo entre a quantidade de papel articulada e o número de corpos pretos em posições contemporâneas de poder. Eu queria densidade e contraste entre essas duas informações, corpo negro e papel pardo, por isso decidi seguir com pinturas de grande formato.

Eu queria que as pessoas sentissem a presença do papel. A própria maneira de instalar as obras ajuda nesse sentido. Queria que as fitas e os rasgos ficassem evidentes; a fragilidade das obras era importante para a poética do trabalho.

Mais adiante, terminei de entender que não se trata apenas de pintura, mas de ar, espaço, som… Não apresentar as obras em moldura ou qualquer estrutura rígida foi uma decisão tomada para enfatizar a precariedade dos materiais na construção do trabalho. A transparência do papel, a obra que se movimenta sutilmente no ambiente, as grandes folhas que cortam o espaço; todas essas características são importantes para a semântica de “Pardo é Papel”.

Eu já tinha uma temática clara na minha cabeça, com uma estrutura conceitual e formal bastante definida. Ao mesmo tempo eu vinha acompanhando a cena de rap aqui no Brasil, que nos últimos quatro anos cresceu bastante, revelando vários novos talentos. Nessa onda, três rappers se destacaram e se tornaram uma referência muito forte na cena nacional: Baco Exu do Blues, da Bahia; Djonga, de Minas Gerais, e BK’, meu conterrâneo, do Rio de Janeiro.

A música e a poesia dos manos do rap serviram para enriquecer e compor ainda mais meus trabalhos, tornando-se um eixo essencial para pensar as obras. Fiquei tão instigado com a qualidade das músicas que passei a ouvir os versos e enxergar imagens. Os caras estavam cantando coisas de que eu também estava tratando. Parti desse lugar comum e separei vários versos para traduzir em pinturas. Penso que o mais relevante disso tudo é poder afirmar que minha produção é pautada por poetas negros que têm vivências congruentes com a minha. Isso é forte e uma quebra de paradigmas dentro da própria história da arte, quando sabemos que é comum que artistas, em sua maioria, buscam se alimentar de uma poesia branca e europeia para produzir.

Para além dessa afirmação, existe uma questão estratégica nessa decisão de pintar versos. O rap é conhecido por ser uma voz das periferias, esse é o tipo de som que chega na favela e é assimilado, ao passo que a pintura ocupa um lugar muito exclusivo de circulação, dentro de um sistema codificado, elitista e privilegiado. Aqui onde eu moro, na favela da Rocinha, arte contemporânea não é um valor, a maioria das pessoas não se interessa ou nem sabe do que se trata. Então, pintar versos de rap é uma maneira de tentar diminuir esse abismo. É uma chance de aproximar o meu trabalho do interesse popular da comunidade.

A primeira vez que mostrei essas pinturas foi no Complexo Esportivo da Rocinha, onde tive meu primeiro ateliê. Eu tinha que deixar o espaço devido a problemas com a administração, então pedi 3 meses e uma data para mostrar minhas últimas peças criadas ali. Foi um período intenso, em que cumpri mais de 15 horas diárias de trabalho para produzir as 12 primeiras grandes obras da série Pardo é Papel.

No dia 3 de março de 2018, ofereci as pinturas em meu 2˚ Dízimo, um ritual em que o artista simbolicamente apresenta 10% de sua produção no altar (espaço). O culto faz parte de um programa de uma Igreja que criei em comunhão com outros artistas: A Noiva, também conhecida como Igreja do Reino da Arte.

Sem equipe de montagem ou suporte institucional, eu e a Igreja começamos a suspender as grandes folhas de papel às 8 horas da manhã. Às 3 da tarde, horário previsto para o início do culto, estávamos longe de terminar a montagem. Nesse momento, uma questão importante da Igreja se validou: o processo de subida das obras sob a ideia de peregrinação ou sacrifício. Não só os membros da Igreja mas todo o público que chegava, iam se inteirando em ajudar a instalar os trabalhos ou resolver qualquer outro tipo de problema.

Não era uma abertura de exposição ou vernissage para socializar e contemplar pinturas. Tratava-se de um ritual no qual a montagem era parte divina da entrega também. Terminamos de subir tudo às 7 da noite. A única obra que não foi suspensa e ficou aberta no chão foi Megazord só de Power Ranger preto, que tinha altura maior que o pé-direito do lugar. Às 8 horas o prédio fechava, então tivemos pouco tempo para ficar em comunhão, testemunhar as pinturas operando juntas no espaço, fazer a oração e desmontar tudo.

Ainda assim, a força das pinturas suspensas em exposição, flutuando no ambiente, ficou guardada em mim. Ali deu para ver que essa era uma exposição monumental, feita mesmo para grandes museus e espaços institucionais. Isso reforçou ainda mais minha ambição de ver essa série como uma exposição itinerante viajando de cidade em cidade, de museu em museu.

O Dízimo no Complexo Esportivo foi marcante por ter sido a ocasião em que me aproximei e acabei fechando a parceria com a A Gentil Carioca, a galeria que vem me apoiando e representando desde então.

Somente um ano depois, em março de 2019, tive a chance de fazer pela primeira vez a exposição institucional de Pardo é Papel, no MAC Lyon (Museu de Arte Contemporânea de Lyon), na França. A oportunidade veio graças ao convite do curador francês Matthieu Lelièvre, que acreditou no trabalho quando viu uma pintura da série, Um cigarro e a vida pela janela, na SP-Arte, ocupando toda a parede externa do estande d’A Gentil Carioca. A pintura foi adquirida pela Pinacoteca de São Paulo naquele mesmo dia.

O show em Lyon iniciou a itinerância da mostra, que agora passou pelo MAR (Museu de Arte do Rio). Dessa vez, eu pude contar com uma grade parceira, a Frances Reynolds, uma colecionadora e mecenas que capitaneia o Instuto Inclusartiz, o grande responsável pela itinerância da mostra até então. Para o MAR a Inclusartiz trouxe como investidor da exposição a empresa, Grupo Petra Gold. Quando pintei essa primeira fase desta série eu sonhava com essa dinâmica, por isso me anima ver que a exposição pode ganhar outros estados do Brasil e mundo afora.

Assim como havia acontecido em Lyon, tivemos alguns problemas no MAR, com empréstimos de obras que foram vendidas para instituições. Foi frustrante saber que o conjunto de trabalhos que criei para serem exibidos juntos estaria desfalcado. Existe um sentimento confuso e comum aos artistas que veem suas criações ganharem o mundo sem poder controlar o destino, a exibição ou domicílio do trabalho. Eu precisava arrumar uma maneira de lidar com isso, então resolvi recriar três obras essenciais para o show que não havíamos conseguido resgatar.

Éramos as cinzas e agora somos o fogo, Um cigarro e a vida pela janela e A lua quer ser preta, se pinta no eclipse foram recriadas para a exposição no MAR com base nas obras originais. A ideia era que essas novas obras fossem exatamente fiéis às versões anteriores, mas durante o processo elas passaram por muitas atualizações, embora a mesma atmosfera tenha sido mantida.

Os mesmos títulos foram usados também, no entanto, com a adição da palavra diss no final, uma abreviação de disrespect, termo em inglês criado no cenário musical onde rappers produzem faixas para se atacarem ou discutirem entre si. Achei pertinente e honesto com meu sentimento de frustração fazer uma afirmação do poder de criação do artista em resposta às burocracias do jogo.

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Além dessas três novas pinturas, criei também mais um trabalho da série Novo Poder para a passagem no MAR, que é um desdobramento de Pardo é Papel. Nessa série eu exploro a ideia da comunidade preta dentro dos templos consagrados para a contemplação de arte: galerias, fundações e museus.

A falta de interesse das periferias e favelas por arte contemporânea é um programa construído. Esse é um segmento de elite e também de distinção social mesmo entre os ricos. Para aqueles que têm iates, helicópteros, mansões e piscinas como bens corriqueiros, a arte torna-se uma referência para dizer quem é mais sofisticado. Nesse sentido, quem tem Picasso em casa e pode compreender Mark Rothko sai na frente.

Para além do capital financeiro, o campo da arte contemporânea é, sobretudo, detentor de um grande capital intelectual e simbólico. Tendo esse fator mapeado, eu entendi que a reivindicação desses lugares tem relação direta com uma posição de poder. Porque são nesses espaços que a história é legitimada, que narrativas e a construção de imagens são manipuladas.

Artistas, galeristas, críticos, curadores, historiadores, mecenas e colecionadores são agentes que detêm códigos desse campo específico, que constroem imagens, mundos, passados e futuros. A arte é um celeiro de cultura. Chamar a atenção da comunidade preta para esse campo é uma estratégia profética de ascensão e tomada de poder.

Inteirar-se dos códigos é uma maneira de começarmos a ocupar parte decisiva na construção da história. Hoje eu ocupo uma posição de poder nesse jogo como um artista que pode criar mundos possíveis, que vão ser selados pelo sistema vigente. Mas sei que essa minha posição não é a regra, os agentes que atuam nessa estrutura são majoritariamente brancos.

Nos vernissages, os negros são encontrados em sua maioria servindo ou limpando, mesmo quando o assunto da exposição são eles próprios. Por isso é importante não só o artista negro ocupar seu local de representatividade num momento como este, mas também que a comunidade o ocupe fisicamente, porque a presença do corpo negro nesses espaços é política. Penso que a convivência real é a fronteira mais eficaz para desconfigurar estereótipos, caricaturas racistas, e por aí vai. Ter o negro apenas em pintura, bidimensional, ou em qualquer representação plástica não é suficiente.

No Museu de Arte do Rio, conforme fui preparando o espaço expositivo, visualizei essa pintura criando um corredor ao ser instalada em frente a uma parede branca, oportunidade perfeita para criar uma experiência de contemplação. No MAC Lyon eu já havia inserido três pinturas da série Novo Poder. Acredito que essa é uma maneira de ir anunciando esse assunto para a audiência, já que meu show em Paris, no Palais de Tokyo, programado para outubro, terá como foco exclusivo essa série.

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A passagem da exposição pelo Rio de Janeiro foi a chance de apresentar pela primeira vez uma performance de Pardo é Papel, com BK’ e Baco Exu do Blues. Foi montado um palco nos pilotis do Museu para os poetas performarem seis faixas, com uma pintura ao fundo, de padrões de piscina Capri dourados, criada especialmente para a ocasião.

Como Baco falou em entrevista para o Museu de Arte do Rio, “foi uma noite importante de ocupação de um espaço de perspectiva branca, um encontro de arte preta, algo que vai ser histórico daqui a um tempo”[1]. A performance aconteceu na inauguração da mostra e a divulgação causou alvoroço nas redes sociais, lotando o museu. A plenitude da série se deu ali, com toda a comunidade preta empoderada cantando “Minha vez de ganhar!”, refrão da faixa “Vivos” de BK’ com participação de Baco Exu do Blues.

A performance foi uma maneira também de desafiar as estruturas já estabelecidas da formatação de Pardo é Papel. Apresentar a série em formato de show foi um dos caminhos que encontrei para colocar isso à prova. A articulação dessas crônicas não podia estar presa a um único suporte. Foi navegando por essa ideia que entendi que minha busca era pela valorização e reconhecimento do conteúdo da série: pretos empoderados, marrentos, ostentando, vencendo…

Eu já vinha interessado nessa questão quando resolvi migrar as narrativas de Pardo é Papel para a tela, a fim de excluir o papel. A pintura tinha que ser identificada como parte da série, mesmo se pintada em uma pedra. Para chegar a esse lugar, eu precisava tomar uma decisão radical: destruir a tradição da série, o papel, recorrendo, nesse primeiro momento, ao que há de mais tradicional na pintura, a tela.

A única tela da exposição no MAR é também um testemunho central dessa pesquisa; a obra sem título é um políptico da série Golden Shower, um desdobramento de Pardo é Papel que tem como tema principal a urina.

As narrativas abordadas dão margem a interpretações escatológicas. Sabendo que o jugo sobre o corpo negro é pesado em qualquer situação, ainda mais quando se trata de uma prática que é tida como imunda e impura, Golden Shower se apresenta como um lugar de afirmação de liberdade de ser o que quiser, fazer o que quiser, independentemente dos estigmas atribuídos a corpos negros.

A tela de Golden Shower foi a única obra que conseguimos resgatar de uma coleção particular para esta mostra, embora eu tenha criado mais 12 pinturas com esse tema para uma instalação que fiz no estande d’A Gentil Carioca durante a Art Basel, na Suíça (2019). Envelopei todo o espaço com papel pardo e mostrei pinturas em telas, portas e papel em diálogo com obras de outros artistas representados pela galeria. O estande teve destaque naquele ano, aparecendo em algumas listas de avaliação como o número 1 da feira.

Tanto na forma quanto no conteúdo, o desenvolvimento da série e seus desdobramentos tratam intensamente de libertação/liberdade. Por isso quis levar trabalhos de Golden Shower para Basel, a maior feira de arte do mundo, um holofote relevante para esses embates e discussões.

Uma ativação que fiz para a exposição no MAR foi a Descoloração Global, ação na qual eu chamo cabeleireiros e compramos Blondor para a galera descolorir o cabelo. Na favela essa é sempre uma ocasião para se juntar, fazer uma bagunça. No meu estúdio mesmo, tem vários momentos em que a gente tá lá trabalhando com Blondor no cabelo. Oficialmente esse evento aconteceu outras duas vezes, uma em 2018 em meu Batismo nas águas – minha primeira exposição individual –, na encruzilhada da rua Gonçalves Ledo com a Luís de Camões, no centro do Rio, onde fica a galeria A Gentil Carioca, e outra em dezembro de 2019, na Rocinha, que foi um ritual para a virada do ano.

Eu pinto o cabelo de loiro desde 2013. Quando ainda era criança eu já queria descolorir, porque é uma cultura forte na favela, mas minha mãe nunca deixou, falava que era coisa de vagabundo. Muitos traficantes descolorem o cabelo, então essa estética ficou associada ao estilo de vida das facções. Nesse contexto, se você era negro e pintava o cabelo de loiro, acabava atraindo a atenção da polícia, de racistas e todo tipo de preconceito. Isso mudou bastante quando celebridades como o Chris Brown, Kanye West, Pharrell, Jaden Smith e, no Brasil, o Belo e até o Neymar adotaram esse estilo. Depois que eles assumiram essa estética também, a moda rapidamente a absorveu.

Pra mim, Descoloração Global é também um comentário de liberdade, de podermos ser o que quisermos ser. É uma afirmação de rebeldia e empoderamento diante de qualquer estrutura discreta e indiscreta de aprisionamento do corpo negro. Uma grande referência que tenho desde pequeno e me ajuda a ratificar essa estética é o famoso anime Dragon Ball Z, que marcou minha geração; seus personagens tinham cabelo preto mas ficavam loiros quando atingiam níveis superiores e viravam super saiyajins, aumentando seus superpoderes.

 

FUNDAÇÃO IBERÊ

A terceira parada da mostra Pardo é Papel foi na cidade de Porto Alegre. Emilio Kalil, diretor da Fundação Iberê, esteve na inauguração no MAR e ficou empolgado com a exposição. Por isso, Frances Reynolds e sua equipe do Instituto Inclusartiz, responsável pela itinerância da exposição, teve a generosa iniciativa de definir com Emilio que o show seguinte de Pardo é Papel seria na Fundação. O Inclusartiz mais uma vez contou com o apoio do Grupo Petra Gold para patrocinar essa empreitada, assim como foi no Museu de Arte do Rio. Estava tudo alinhado desde o início do ano para a exposição acontecer, mas fomos surpreendidos pela crise do Covid-19. A pandemia desestabilizou os planos de continuidade da itinerância da mostra.

Com a agenda congelada, e todos ansiosos sem saber o que aconteceria num breve futuro, resolvemos desmontar a exposição do MAR mais cedo. Foi uma pena para quem deixou a visita para os últimos dias, porém uma esperança com a concretização da passagem da exposição pelo Rio Grande do Sul, pois a desmontagem antecipada no Museu de Arte do Rio oferecia mais segurança para a próxima exposição. Digo isso pois existe um protocolo de preservação mínima das obras, que exige que elas fiquem guardadas durante um tempo considerável, antes de serem instaladas novamente, por conta da acidez e fragilidade do papel. Mesmo com essa margem de tempo para o repouso dos trabalhos, a pandemia dificultou um processo seguro de manutenção das pinturas mais antigas, de 2017 e 2018, que estavam realmente precisando de reparos. Esse grupo de obras teve que ficar de fora da nova exposição. De qualquer forma, não seria possível ter todos os trabalhos, considerando as propriedades físicas do novo espaço expositivo em relação aos outros por onde a mostra já havia passado. Esses fatores foram coautores da curadoria, que nos permitiu selecionar somente 11 pinturas. Mas uma novidade para a passagem de Pardo é Papel em Porto Alegre consistiu em uma obra em vídeo: o registro da performance de Pardo é Papel com BK' e Baco Exu do Blues.

 

INSTITUTO TOMIE OHTAKE

A quarta parada de Pardo é Papel acontece no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo. A expectativa do público parece alta, muito por conta do sucesso das passagens anteriores e de todo o conteúdo gerado para promover o show, que continuará viajando e ganhando cada vez mais força. São Paulo tem um dos circuitos culturais mais aquecidos do país, e já estava aguardando a exposição chegar à cidade.

Alguns painéis da série já foram mostrados no estado, como as obras Éramos as cinzas e agora somos o fogo, na exposição Histórias Afro-Atlânticas no MASP em 2018, e Um cigarro e a vida pela janela, na SP-Arte, também em 2018. Inclusive esta mesma obra se encontra na atual exposição do acervo da Pinacoteca. Foram aparições isoladas. Mas desta vez a audiência vai ter a chance de ver os pares desses trabalhos juntos, reunidos pela primeira vez na cidade.

Para esta ocasião eu ampliei 4 vezes a obra sem título, com padrão de piscina Capri dourado, para circunscrever parte do espaço expositivo. Além disso, optei por não mostrar o vídeo da performance e reinserir uma das pinturas mais importantes de toda a série, a obra Se eu fosse vocês olhava pra mim de novo, que vou instalar isoladamente numa parte da sala. Neste capítulo, novamente, seguimos forte com o Instituto Inclusartiz e a Petra Gold realizando e financiando mais uma vez esta empreitada.

 

THE SHED

A passagem em Porto Alegre foi marcada pela reabertura da agenda cultural do país, devido ao hiato da primeira fase da pandemia. No entanto, Pardo é Papel no Instituto Tomie Ohtake, em São Paulo, nos mostrou a fragilidade das políticas de afrouxamento do isolamento social e medidas outras que tentavam normalizar a vida. Essa instabilidade ameaçou fechar a exposição no Instituto várias vezes. Eu havia me programado para realizar novamente a performance de “Pardo é Papel”, desta vez com os três poetas; BK’, Baco Exu do Blues e Djonga. A questão é que não poderíamos ter um grande público como foi no MAR. A alternativa seria a realização de uma live - algo que havia se tornado um fenômeno de comunicação explorado demasiadamente durante a quarentena. Realizaríamos a performance sem público, transmitindo ao vivo pelas redes sociais. Eu já tinha afinado tudo com os rappers para fazer essa ativação acontecer, mas a crise foi se acirrando. Inclusive, houve uma fatalidade no time do Instituto; um dos seguranças faleceu em decorrência de Covid-19. A situação sensibilizou a todos e a performance não aconteceu, porque mesmo sem o público, ainda teríamos que envolver muitas pessoas na logística e produção para que a ativação ocorresse.

Mesmo com o agravamento da crise, a mostra seguiu até o fim, com visitação normal, mas mantendo todos os protocolos de contenção do vírus. No último final de semana da mostra, eu reuni 8 pessoas, todas negras, de São Paulo, para fazer uma ativação que chamei de Rolezinho: inspirado em um movimento espontâneo de mesmo nome, que aconteceu por volta de 2013, onde jovens, a maioria de periferias, marcavam encontros (através das redes sociais) em lugares nobres da cidade, como praças, shoppings, etc.

O Rolezinho dentro de minha prática tem uma conotação similar a do original: ocupar, circular, permanecer em lugares onde certos grupos sociais não são bem vindos pelas suas vestimentas, vocabulário, enfim, pelo seu ethos. A potência desta ativação se dá em juntar o máximo de pessoas possível, uma vez que a ação é sobre gerar estranhamento e desconforto. No entanto, num contexto de pandemia, eu precisava reunir o mínimo de pessoas—seguindo as normas de segurança estabelecidas—mas que ainda gerasse um impacto da presença de um grupo de pessoas negras, circulando e se afirmando na fachada de uma instituição de arte, assim como nos corredores, banheiros, bibliotecas e galerias daquele espaço. A escolha para os integrantes da ativação se deu a partir de fotos que encontrei no instagram, registros feitos dentro da minha exposição. O Rolezinho que aconteceu no dia 26 de Junho de 2021 foi uma ativação até então inédita no curso da itinerância de Pardo é Papel.

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Em 18 de dezembro de 2021, inaugurou a segunda Bienal da Tailândia, da qual fui convidado a participar através da curadora chefe do evento, Yuko Hasegawa que, por intermédio de Frances Reynolds, foi ver Pardo é Papel em sua primeira parada, ainda em Lyon, no ano de 2019. Minha primeira presença significativa no circuito asiático é fruto dessa história: a passagem de Pardo é Papel, ainda que de forma reduzida, com menos trabalhos, pela Tailândia. Essa foi a quinta parada da série em sua itinerância.

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O convite para mostrar no The Shed veio por indicação do curador e crítico Hans Ulrich Obrist, que demonstrou vontade de trabalhar comigo desde nosso primeiro encontro em Basel, durante a feira de arte, em junho de 2019. Frances Reynolds foi quem, mais uma vez, mediou o encontro. De lá pra cá, eu e Hans, colaboramos em alguns projetos menores até que a carta oficial do The Shed chegou, em fevereiro de 2020. Desde então eu e minha equipe passamos a conversar mais especificamente com a curadora responsável pela exposição, Alessandra Gómez.

Enquanto a itinerância acontecia, eu fiz mais dois lançamentos significativos para a série. O primeiro foi em Londres na galeria David Zwirner em 2020, onde mostrei 9 obras inéditas de “Pardo é Papel”. Embora não tivesse uma conexão precisa com a exposição itinerante, esse lançamento foi decisivo para eu repensar, classificar e renomear a exibição que viajava. A produção de “Pardo é Papel'' para a David Zwirner teve uma densidade e relevância de criação muito parecida com a das obras que criei em 2017 e 2018, e que agora viajam de instituição a instituição. Os contextos e condições eram, porém, absolutamente distintos. Como então distinguir esses dois períodos, sem que houvesse uma confusão quanto ao que pertencia à exposição itinerante e o que estava sendo mostrado em Londres?

Para compreender esta questão, trago parte do testemunho que escrevi na ocasião:

“(…) A interseção entre artes plásticas e música em minha prática me fez naturalmente estabelecer relações entre os dois campos para além de apenas pintar versos. Eu comecei a me interessar, por exemplo, em como os músicos organizam suas obras a partir de um sistema composto por álbuns, mixtapes, EPs e singles. Normalmente álbuns são construídos dentro de um período limitado de tempo, englobando um momento da pesquisa de um músico, e frequentemente construídos com um conceito ou tema específicos. Enquanto isso mixtapes são junções mais aleatórias de um conteúdo, e EPs apresentam trabalhos interligados porém concisos, com menos faixas. Já o single é uma música lançada isoladamente dessas divisões e, por mais que ela entre em uma dessas categorias, é comum seu uso como forma de promover o artista, chamar atenção para um outro projeto maior, sendo mais estratégico no sentido de apresentar uma potência que está por vir e angariar público. Enquanto isso, na pintura, a organização mais tradicional se dá a partir de séries, que dividem a produção do artista mais por motivos/temas que por períodos.

Essa reflexão me aparece exatamente neste momento onde começo a preparar Pardo é Papel - Close a door to open a window, minha próxima exposição individual para a galeria David Zwirner em Londres. A mostra foi desenhada para ocupar os dois andares da galeria com 9 pinturas em grande formato, sendo três delas dois díptico e um tríptico. A densidade de trabalho e assuntos articulados nesse show me levou a querer de alguma maneira separar essas obras em uma coletânea delineada, e foi nesse momento que o conceito de álbum surgiu como uma forma de organização de minhas pinturas.

Olhando retroativamente, precisei renomear o primeiro período de “Pardo é Papel”, que acontece em 2017-2018, onde crio as 12 primeiras pinturas da série e mostro no Complexo Esportivo da Rocinha, ainda no contexto religioso da Igreja do Reino da Arte, em forma de Dízimo, culto. Incluo ainda como parte deste mesmo período, obras que realizei em 2019 quando essa mesma mostra passou a ser institucionalizada e viajar, começando este processo no MAC-Lyon, na França. A obra que mais sintetiza este período é A vitória gloriosa. Seria esta obra, portanto, a capa de meu primeiro álbum.

Construindo agora este segundo álbum que será lançado no estrangeiro, eu resolvi inserir versos de mais 3 artistas internacionais dos quais eu sou muito fã e que já vinham inspirando esteticamente “Pardo é Papel”. São eles: Frank Ocean, Solange e Tyler, the Creator. O título da exposição, Close a door to open a window, é a pintura deste verso que selecionei da faixa “Magic Wand” de Igor, disco de Tyler. Essa é a capa deste meu novo momento com “Pardo é Papel” (…).”

O segundo lançamento significativo foi o de “Novo Poder”, que contou com 3 aberturas simultâneas: um show principal no Palais de Tokyo, e dois pela A Gentil Carioca, em suas galerias do Rio de Janeiro e São Paulo. Ainda que a série só viesse a ser lançada definitivamente em 2021, eu já vinha incluindo pelo menos uma uma obra de “Novo Poder” em paradas anteriores de “Pardo é Papel", uma espécie de introdução para o público. No trecho estão questões e pensamentos ao redor desse lançamento:

“(…) Pouco mais de um ano desenvolvendo pesquisa, conceito e sketches para fazer esse projeto, no dia 5 de abril começamos as primeiras execuções das pinturas no estúdio novo. Como a série “Novo Poder” é monotemática (figuras pretas dentro de espaços expositivos, como museus, galerias e fundações, se relacionando com arte contemporânea, principalmente contemplando pintura), eu a encaro quase como a prática de pintura de natureza morta: articular objetos numa mesa para pintar suas variações a fim de entender sutilezas de tais objetos de estudo. Em “Novo Poder” eu escolhi trabalhar exatamente desta maneira, de tal forma que a investigação ficou tão prolífera que eu não me preocupei em montar uma expografia a priori. A idéia era trabalhar com densidade e levar o assunto à exaustão até que eu pudesse olhar para o todo mais tarde, e só então começar a curar cuidadosamente o que entraria na exposição, de modo que o lançamento e apresentação desta série pudesse acontecer de forma básica, em sua gênese, mas que ao mesmo tempo fosse o mais integral possível. Eu criei mais de 100 novos trabalhos, sem contar com os esboços inacabados. Eram tantas obras realizadas que eu tinha o suficiente em mãos para fazer pelo menos mais dois shows nos próximos anos.

Foi pensando nisso, junto da abertura de um novo espaço d’A Gentil Carioca em São Paulo, que tive a ideia de ocupar o novo ambiente, e também o antigo e tradicional espaço no Rio de Janeiro, com as obras que não entraram no show principal em Paris, no Palais de Tokyo. Encontrei neste insight, também, uma maneira conceitual de falar precisamente desse período de pandemia global que estamos vivendo, uma vez que se reunir ou viajar torna-se uma realidade a ser ponderada. Abrir a mesma exposição em 3 diferentes lugares do mundo, poeticamente dá conta dessas ponderações, já que eu consigo dividir minha audiência entre os 3 shows. Sem contar na ideia de trazer um pedaço de Paris, centro do mundo, onde acontecerá o show principal, para o centro do Rio de Janeiro, onde o acesso e a possibilidade de contato entre a periferia, o público principal a quem o trabalho se refere, se potencializam. Este último ponto é muito especial para mim.

Além das 3 exposições produzidas, eu ainda planejei algumas inserções de “Novo Poder” em feiras de arte como parte deste grande lançamento da série. Comecei com 3 painéis que foram exibidos no estande d’A Gentil Carioca no retorno da maior feira do circuito, Art Basel, na Suíça, no mês de outubro. Em novembro foi a vez de retornar também com a maior feira de arte da América Latina, a SP Arte, em São Paulo, onde a galeria instalou 4 painéis inéditos de “Novo Poder” distribuídos em todos os dias da feira. A continuação dessas inserções que deram apoio ao lançamento da exposição em Paris, Rio e São Paulo, aconteceu em dezembro na Art Basel Miami com mais 4 novos painéis: sendo 3 instalados no estande da galeria durante os dias de feira, e 1 painel principal que estará disponível no Meridians, uma seção especial de projetos de arte em larga escala inspirado na seção Unlimited de Art Basel Suíça, que inaugura nesta edição da feira, nos Estados Unidos. (…)”.

A confirmação da exposição no The Shed me pareceu uma boa oportunidade para juntar esse primeiro momento de “Pardo é Papel - A Vitória Gloriosa”, e o mais recente desenvolvimento da série, “Novo Poder”. Essa aproximação revela a evolução desse corpo de obra nos últimos cinco anos, criando paralelos e tensões entre os dois momentos. Como parte de Pardo é Papel, tanto “A vitória Gloriosa” quanto “Novo Poder” elaboram aspectos diferentes dos temas centrais da série que os envolve: retratos e profecias de um futuro de benção, glória e bonança para a comunidade preta.

“A Vitória Gloriosa” inicia essa intenção pintando as formas mais materiais e terrenas de poder e acesso: roupas, jóias, carros, jatos, comida, festas… Além de enaltecer amigos, personalidades famosas, e carreiras que marcaram a subida de pessoas pretas no Brasil, como a música e o futebol. A ostentação nas periferias é um símbolo de poder que incita recorrentemente à imaginação, e é uma maneira direta de mostrar que é possível conquistar, de que dinheiro e pele preta também combinam, como diz Baco Exú do Blues. A ostentação é também uma das fortes características do funk e do rap. É cultural. Nesse primeiro momento, ao fazer referência a essas linguagens, já surgia uma preocupação que veio a se tornar central em minha prática: criar trabalhos, séries e narrativas que levem o público preto para os museus e espaços da arte contemporânea.

A concretização dessa intenção é a gênese de “Novo Poder” que, embora só viesse a ser lançada oficialmente anos depois, já existia ali, nas primeiras exposições de “Pardo é Papel”, pela presença massiva de pessoas pretas em um espaço que não foi desenhado para recebê-las. Muitos dos visitantes de minhas exposições estavam pela primeira vez num ambiente de arte contemporânea, contemplando as obras daquelas que agora faziam parte, quer dizer, retratados em pinturas, sentiam-se orgulhosos e valorizados.

Desse modo, ambas as séries simultaneamente contém, e estão contidas, uma na outra. “A Vitória Gloriosa”, ao falar das muitas formas de empoderamento e orgulho preto, atrai essas pessoas para o universo da arte, enquanto “Novo Poder” espelha e reflete sobre esse movimento. Sendo assim, ao mesmo tempo, é feito um recorte estreito, focado em uma das muitas carreiras de ascensão contidas em “A Vitória Gloriosa”, e um olhar expandido, meta, se afastando e ampliando a perspectiva sobre o sistema em que suas obras estão contidas. Por outro lado, como em todo meu corpo de trabalho, “Novo Poder” tem o aspecto de autorretrato, onde eu me debruço sobre o universo particular que me permitiu chegar aqui. Não por acaso a cor parda, traduzida como os objetos de arte, frequentemente remete, pelos grandes formatos retangulares, às próprias obras de “Pardo é Papel”. Sob um olhar biográfico, a série fala sobre como, ao chegar numa posição de sucesso -, olhei em volta e me vi envolvido em um mundo dominado quase exclusivamente por brancos. A série é um estudo e mapeamento das contradições, armadilhas e oportunidades desse campo para que mais pessoas pretas possam se infiltrar, não só como espectadores ou objetos das obras, mas enquanto agentes em posições de poder: curadores, artistas, colecionadores, diretores, financiadores, galeristas, etc.

Mas ainda assim é preciso ir além, e “Novo Poder” então aprofunda e imagina o futuro desse plano do qual “A Vitória Gloriosa” deu os primeiros passos, ultrapassando as formas mais materiais e terrenas de acesso—roupas, poses, jóias, carros, jatos, comida, festas—e concebendo o acesso a valores mais imateriais e etéreos - contemplação, vadiagem, irreverência, intelectualidade, filosofia, tempo livre, ambiguidade, incerteza, inutilidades.

A profecia está mais adiante na análise e proposição do que seria não só a ocupação física, mas também metafórica dos espaços de arte e os privilégios que eles contém. A arte é um lugar de disputar narrativas, que são produzidas e legitimadas. Imagens que moldam o imaginário coletivo, guardando o passado e profetizando o futuro. Apontando o que tem valor ou não, o que e como vai ser mostrado.

No futuro de “Novo Poder” a comunidade preta está a par dos códigos da arte contemporânea, capaz de se relacionar sem ressalva com os objetos, performances, instalações, pinturas e tudo mais. Onde essa audiência não sente mais repulsa no espaço branco, que sempre lhe foi hostil. Onde a relação com a abstração e a não-finalidade não são mais uma culpa, pois o peso político e social de um negro vencer e ser funcional foi diluído. Esse é um aspecto na arte que me interessa particularmente enquanto reivindicação de poder e liberdade para um povo: objetos de arte como alimento do espírito. O gozo estético é um privilégio. E a arte oferece esse lugar na máxima potência, ao se visitar uma exposição de arte contemporânea, principalmente de pinturas abstratas; um privilégio e uma necessidade que não sabíamos que podíamos ter. Não fomos educados para isso, esse lugar nos foi roubado: o das experiências que transcendem a finalidade prática das coisas, dos objetos e até mesmo dos comportamentos e afazeres.

A contemplação e o fazer artístico, a rotina, os ateliês, foram inicialmente idealizados e romantizados por e para os brancos. Viver a arte como um lugar religioso, de alimento da alma, do encontro com o sublime. Aos artistas são autorizadas a excentricidade, a exceção, a inutilidade. O privilégio de não precisar se apressar, ou dar certo, de funcionar, mas de ser vadio e intelectual. O luxo imaterial máximo; do tempo livre, do descanso, da ingenuidade, da loucura. O direito à displicência e à irreverência, com o dinheiro, com os bens, a autoridade, com o próprio foco, e o próprio tempo. Quem pode estudar, entender, dar sentido, criar e fetichizar objetos com valor prático tão reduzido? Essa tensão é importante porque ela fala muito especificamente de questões de classe e culturais. Vindo de um lugar onde tudo é permitido. Fruto de um berço farto onde tudo se pode, onde se é acostumado com o poder e o luxo, com não se preocupar com a aparência das coisas, inclusive a própria.

“Novo Poder” é portanto também a ocupação desses ideais romantizados e utópicos da arte. Não à toa, por vezes, os espaços brancos, que envolvem obras e personagens, beiram a abstração sem definição espacial clara, completamente higienizados, herméticos, como lojas de jóias caras, ou marcas de grife, assépticos. São espaços liminares, entre o que foi e o que vai ser, transitórios entre a partida e a chegada. E a profecia é a ocupação dessa aura, desse subconsciente, da tranquilidade branca, com pessoas pretas calmamente circulando em meio ao branco, à branquitude, absorvendo seus códigos, seus símbolos.

Por fim, assim retratada em “A Vitória Gloriosa”, uma pintura é um objeto único, tradicional, certamente também com seu valor de ostentação, uma posse, um bem de consumo. É uma ostentação mais sutil—imagina chegar na casa de alguém e se deparar com um dos trípticos de Francis Bacon bem na sala? No entanto, em “Novo Poder” esses objetos passam a ser considerados por seu valor intelectual, filosófico e religioso. São tokens, de alto valor especulativo e simbólico. E talvez a transformação mais interessante seja que deixem de ser o objeto final do desejo, e se tornem um meio para a ascensão que eu vejo para as pessoas pretas, que ao criar, contemplar, vender, colecionar, curar e dominá-los, possa desfrutar a sutileza, sublimação e gozo antes reservado aos brancos.

 

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[1] Essa afirmação pode ser encontrada na entrevista com Baco Exu do Blues, na abertura da exposição de Maxwell Alexandre, publicado no Youtube: https://youtu.be/0Dg89gHA3Jc?t=184 O título da série vem da expressão usada para falar do ato de urinar no outro durante a relação sexual. A expressão ganhou as manchetes em 2019 quando Bolsonaro, atual presidente do Brasil, tuitou um vídeo no qual duas pessoas praticavam o ato na rua durante o carnaval e logo em seguida voltou ao Twitter perguntando: “o que é golden shower?”. Foi uma polêmica total, o que me fez tratar desse assunto em uma pintura específica, que acabou desencadeando toda uma série.

 

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Editado por Daniel Frickmann, Isadhora Müller, Lucas Tolezano e Raoni Azevedo
Traduzido por John Norman e Matthew Rinaldi