ENTREVISTA REALIZADA EM 2019
Estão presentes Hans Ulrich Obrist, Maxwell Alexandre e Frances Reynolds.
Hans Ulrich Obrist: Gostaria de começar pelo começo. Como você chegou à arte?
Maxwell Alexandre: Eu desenho desde criança. E meu sonho era trabalhar com o Mauricio de Sousa, o cartunista da Turma da Mônica. Eu era criança quando comecei a me envolver com o mundo dos quadrinhos. Eu costumava assistir a animes na TV e jogar videogame. Isso fez parte da minha infância.
HUO: Como foi sua infância na favela e seu contato com esses quadrinhos?
MA: Eu cresci na Rocinha, no Rio de Janeiro. É a maior favela da América Latina. E as revistinhas são acessíveis para as crianças da favela. E, como eu estava sempre desenhando, as pessoas diziam: “Nossa, você é artista, você é artista.” Eu achava que arte era a Turma da Mônica¸ por exemplo. Então eu comecei a desenhar minhas histórias em quadrinhos para vender na escola. Meu medo era ter uma vida normal − crescer, ter um emprego comum, casar, sabe? Coisas assim. Então eu tentei transformar minha vida em uma aventura. E comecei a jogar videogame.
HUO: Isso é lindo. Então você queria que a sua vida fosse uma aventura. E foi por isso que se interessou por videogame?
MA: Sim. Eu me apaixonei por um personagem do Sonic¹ e comecei a patinar. Eu patinei por doze anos. Eu era patinador profissional, tinha patrocínio, participava de competições. Isso tudo porque eu havia descoberto um novo personagem de Sonic adventure, que usava patins futuristas.
HUO: Então você criava histórias em quadrinhos e queria que sua vida fosse uma aventura, e daí passou a jogar videogame. Qual videogame o inspirou mais?
MA: Sonic adventure, da Dreamcast, último videogame da marca Sega. Eu conheci esse personagem que era um porco-espinho futurista que patinava. O Sonic é azul, mas esse personagem é preto. Então, pela primeira vez, eu via um herói negro, esse porco-espinho. Eu queria ser esse personagem, o Shadow. E pra ser o Shadow, eu tinha que aprender a patinar.
HUO: Então esse personagem se tornou o seu herói. Fascinante. Eu não sabia dessa influência do videogame. E isso é interessante, porque, claro, tudo isso foi parar na sua pintura mais tarde, de alguma forma. Você começou a pintar com patins, então, de alguma forma, os patins o levaram à pintura. Você ainda patina?
MA: Não. Mas essa foi a forma que eu encontrei de transformar minha vida em uma aventura. Esse tipo de mercado não é sustentável, sabe? Então eu procurei criar o mercado. Eu tinha que trabalhar para a indústria dos patins e tentei criar algumas marcas, criar estampas para camisetas, por exemplo. Eu precisava produzir meus vídeos pra conseguir patrocínio, pra viajar para as competições. Então eu decidi entrar para a universidade pra melhorar a minha situação.
HUO: Você começou a pintar num prédio abandonado, é isso?
MA: Sim, um hotel² abandonado de dezesseis andares. Ele estava completamente vazio. Então eu ocupei esse prédio por quase dois anos com outros artistas. E lá eu pude experimentar diversos tipos de coisa e fiz a minha primeira pintura. Encontrei uma forma de unir minha antiga prática como patinador à minha nova prática como artista.
HUO: E você fez parte da cena da arte urbana, do grafite?
MA: Sim, no início o grafite foi uma influência. Eu não gosto muito de grafite hoje em dia. Mas foi uma referência pra mim. Depois que passei a ter contato com o Eduardo Berliner, por exemplo, eu conheci outras formas de fazer arte. Conheci, por exemplo, William Kentridge, Bruce Nauman, David Hockney.
HUO: E artistas como Basquiat ou Keith Haring?
MA: Sim, Basquiat e Keith Haring foram muito importantes pra mim. Keith Haring antes e teve grande influência na minha prática.
HUO: Sua primeira exposição foi em 2018. É tudo muito recente, não?
MA: Sim, muito recente. Como profissional no sistema, sabe? Na minha exposição, eu apresentei uma série de pinturas em portas e janelas. Produzi também 4 pinturas em grande formato em lonas que eu carreguei junto com membros da Igreja do Reino da Arte, do meu estúdio na Rocinha até a galeria, no Centro da cidade. É uma caminhada de quatro horas. E na galeria, havia uma estrutura para receber as pinturas.
HUO: Então você criou sua própria religião. Isso é fascinante. O cineastas russo Andrei Tarkovsky4 dizia que nós deveríamos trazer os rituais para o século XXI. E qual é o nome da sua religião? Você acha que a arte substitui a religião? Arte é a nova religião?
MA: Se você analisar a palavra religião, ela significa “reconexão com o divino”, com a ideia de divino. O nome da religião é Arte.
HUO: Você também escreve? Você também é poeta?
MA: Acho que sim. Eu não preciso escrever para ser poeta. Mas eu escrevo bastante, é através da escrita que eu tento me entender. Eu costumo escrever sobre a minha prática.
HUO: E você também pinta. Essas pinturas enormes que você mostrou são fantásticas. Como você as faz? Eu vi alguns fragmentos, mas elas não são uma composição só, são vários fragmentos. Como é o processo? É colagem? Você faz um esboço?
MA: Sim, eu faço o esboço. É colagem. Antes do meu trabalho se tornar reconhecido, eu participei de uma coletiva na Fortes D’Aloia & Gabriel, no Rio. Eles abriram um edital. E a regra era: qualquer artista pode mostrar seu trabalho, contanto que o trabalho passe pelo portão. O limite era o tamanho do portão. Então eu comecei a fazer uma série que se chama Pardo é papel. Porque, no Brasil, nós temos esse famoso papel, o papel pardo. É um papel comum. E no Brasil, pardo era uma palavra usada para denominar um determinado tom de pele. Na minha certidão de nascimento, eu fui registrado como pardo, não como negro, sabe? Mas a comunidade negra passou a ter orgulho da própria cor. Então, agora, os negros não são mais pardos, nós somos negros. E um dia eu cheguei no meu estúdio e comecei a pintar em um pedaço de papel pardo. Depois da minha quarta pintura, eu comecei a perceber que eu estava praticando um ato político, porque eu tinha decidido pintar corpos negros no papel pardo. E criei essa série para falar sobre autoestima e sobre o orgulho de ser negro.
HUO: E aí você fez a série. E como você acabou fazendo essas pinturas grandes?
MA: Eu comecei duas séries ao mesmo tempo. Mas, para apresentar meu trabalho no edital, eu tinha que chamar a atenção das pessoas. Para isso, eu precisava ocupar um espaço grande. Minha ideia era criar uma pintura grande. E como eu estava usando papel, eu pus vários pedaços de papel na parede do meu estúdio, quatro vezes o tamanho dele. Assim, eu poderia dobrá-lo para passar pelo portão.
HUO: Uau! Então o portão não é uma metáfora, é real.
MA: Sim. Então, quando eu abri meu trabalho na galeria, todo mundo disse: “Tem o tamanho do portão, você precisa passar por ele.” E eu disse: “E eu passei, o trabalho ta aqui, dentro do espaço”. E deu certo. Depois disso, eu conquistei meu espaço no sistema da arte.
HUO: Você passou pelo portão, e agora você deve mudar o sistema. O próximo passo é mudar o sistema estando dentro dele.
MA: Com certeza, sim.
HUO: Você conhece a Faith Ringgold? Ela trabalha com a questão do black power. Você vai se apaixonar. Você também deveria conhcer o artista chileno Eugenio Dittborn? Folded paintings, de Eugenio Dittborn. Você vai gostar dele também. Ele é dos anos 60. Ele fez pinturas dobráveis, uma espécie de arte postal.
MA: Vou procurar!
FRANCES REYNOLDS: Mostre a ele aquele trabalho tridimensional. Aqui a pintura era muito maior do que a parede, então o que ele fez foi espalhá-la em três dimensões.
MA: O trabalho é quatro vezes maior do que a parede do meu estúdio. Então, em Lyon, foi a primeira vez que eu pude pintá-lo de forma completa. Assim eu pude ver todas as partes da pintura juntas.
HUO: Sim, sim. Isso é muito estimulante.
MA: Eu fiz um trabalho em que pintei letras de alguns rappers brasileiros. Cada pintura tinha um verso. Para mim, isso foi muito importante, porque, se você analisar a História da Arte, quase todos os artistas basearam suas produções em poetas brancos e europeus. Então eu baseei a minha produção em poetas negros.
HUO: Quem é seu rapper brasileiro favorito?
MA: BK³. Ele é um grande amigo. E dois outros rappers: Baco Exu do Blues⁴ e o Djonga.⁵ Esses três rappers inspiraram meu trabalho.
HUO: No meu Instagram, todos os dias eu faço uma pergunta a um artista. Você tem uma pergunta? Uma pergunta para ser feita para o mundo. Hoje nós postamos a pergunta do Antonio Caro. “Você sente-se satisfeito com o impacto social do seu trabalho?” Faith Ringgold: “Quando nós teremos uma presidente mulher nos Estados Unidos e quem ela será?” Laurie Anderson: “De quem é esta guerra?” Enfim, sempre tem uma pergunta – política, poética, filosófica, artística. Pode ser sobre qualquer coisa. Mas vai aparecer para 250 mil pessoas. Então deve ser uma pergunta que as pessoas consigam responder. É bem amplo.
MA: O que eu poderia fazer amanhã?
HUO: Isso é ótimo.
ENTREVISTA REALIZADA EM 2020
HUO: Bom ver você novamente, Maxwell. Onde você está agora?
MA: Eu estou no meu estúdio, na Rocinha, no Rio de Janeiro. Estou trabalhando numa exposição que eu vou fazer na [galeria] David Zwirner, em Londres.
HUO: Ótimo. E o que você vai expor?
MA: Nove pinturas, a segunda parte da série Pardo é papel.
HUO: E você poderia falar um pouco sobre essas pinturas?
MA: Essas pinturas, essa segunda parte de Pardo é papel, eu estou chamando de Close a door to open a window. Este é um segundo momento de bastante intensidade de Pardo é papel, e eu senti necessidade de catalogar as pinturas fazendo uma analogia com a música. Enquanto, na pintura, as divisões são feitas muito por séries e temas, na música tem uma coisa de conseguir fazer coletâneas e reunir isso com mais precisão. Como na organização de álbuns, ou EPs, ou mixtapes, e por aí vai. A partir dessa exposição, eu comecei a olhar retroativamente para o grupo de pinturas de Pardo é papel do passado. E estou chamando esse grupo de pinturas de A vitória gloriosa, que é uma pintura específica. Então essa pintura seria a capa do que eu estou chamando de “primeiro álbum”, que é esse álbum antigo. Estou chamando esse novo álbum de Close a door to open a window, que é o momento em que eu começo a inserir três poetas internacionais, que são o Frank Ocean, a Solange [Knowles] e o Tyler, The Creator. No “primeiro álbum”, eu estava trabalhando com três rappers brasileiros, que eram o BK’, o Baco Exu do Blues e o Djonga - eu já tinha falado sobre eles [na primeira entrevista]. Então, para esse contexto internacional, eu vi uma oportunidade de trazer esses poetas para esse novo show. E, aí, o nome Close the door to open a window vem de uma música chamada “New magic wand”, do novo disco do Tyler.
HUO: Ótimo. Eu estou ansioso para ver essa exposição. Na última vez que nos encontramos, nós falamos sobre como você chegou à arte. Você foi para Londres, para uma residência artística, e depois fez uma exposição em Lyon. Essas foram suas primeiras experiências fora do Brasil. Então eu queria perguntar sobre essas experiências e sobre o impacto que elas tiveram sobre o seu trabalho.
MA: Londres foi minha primeira viagem internacional. Foi muito rápido. Eu fiquei um mês. Mas o programa da Delfina [Foundation] é muito intenso. Então os agentes – a Frances [Reynolds], os galeristas –, que estavam envolvidos nessa viagem tinham um roteiro para eu seguir, por ser uma cidade muito forte culturalmente. E isso, de alguma forma, me parecia um pouco sufocante. Porque eu preciso de pouco estímulo para produzir. Se eu começo a ter muito estímulo, eu começo a ficar ansioso.
O que eu mais percebi, principalmente em Londres, foi a diferença de mercado mesmo, como o mercado é mais bem-organizado, como a cena é mais aquecida. Além disso, as instituições culturais são muito ativas e presentes. Depois que você volta para o Brasil, esses aspectos institucionais parecem amadores. Claro que no sentido da qualidade do fazer artístico, o Brasil é muito potente. Mas fiquei mais ligado nas questões de profissionalização da arte a partir dessa viagem.
Em Lyon eu expus no MAC [Musée d’Art Contemporain de Lyon]. E uma coisa inédita que essa experiência me trouxe foi poder pintar uma folha de papel pardo inteira. Porque as minhas pinturas são muito grandes, eu vou pintando por partes. E, lá em Lyon, como meu estúdio era no próprio museu, eu pude fazer uma pintura que tinha quase três vezes o tamanho do formato original. Essa foi uma experiência marcante. Ter um estúdio dentro de um museu foi uma coisa maneira.
HUO: No Rio de Janeiro, um grupo de artistas fundou uma cena artística da qual você faz parte, que você concebeu: Igreja do Reino da Arte, A Noiva. E essa igreja é sediada na Rocinha e é um local de encontro para jovens artistas. É incrível que essa cena artística tenha sido formada tão rapidamente. Eu queria que você falasse um pouquinho sobre como essa cena se deu e o que ela significa para você. E também sobre o batismo. Também tenho muito interesse em saber sobre esses trabalhos que são uma procissão, esses rituais. Você pode falar para a gente um pouco sobre a gênese dessa igreja? Eu me pergunto se milagres aconteceram.
MA: A Igreja do Reino da Arte, também conhecida como A Noiva é basicamente uma igreja para artistas que nasce em 2017, a partir de uma reunião, ali, de alguns amigos da PUC [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro]. Raoni [Azevedo] é um dos membros fundadores. E a gente começou a se reunir enquanto congregação como uma maneira de dar saída ao que a gente estava fazendo. Naquele momento, eu ainda não era um artista integrado. A gente flertava com o mundo da arte, mas a gente não sabia ainda como era a entrada. Essas entradas se dão muito por relações, não pela qualidade de um trabalho necessariamente. E como a gente não era bem-relacionado com os agentes do campo, a gente resolveu criar essa congregação. E a gente sabia que não podia criar um coletivo de arte, porque coletivo de arte já era uma coisa... Eu não sei se defasada é a palavra, mas trazia uma conotação que não era o que a gente queria. A ideia de coletivo também tem a ver com o fazer em coletivo; enquanto a Igreja é uma reunião que acontece coletivamente, mas existem os fazeres que são individuais. Teve a ideia de “evangelho próprio”. Ao mesmo tempo que a gente está criando está traçando uma narrativa coletiva mas cada um tem um ponto de vista e pode escolher seu próprio evangelho, ou sua própria bíblia.
Uma outra característica da igreja, que eu vejo como a mais potente, é que a gente muda o mindset do artista. Quando a gente faz uma Santa Ceia, não é uma exposição, é uma oferenda. A gente tenta trabalhar, na igreja, algo muito mais próximo do que Rainer Maria Rilke fala: que uma obra de arte é boa quando é feita por necessidade. Porque, a partir desse momento, percebemos que os critérios e os termos que muitas vezes são construídos por um grupo passam por uma arbitrariedade. Tem muito artista que fica inseguro, querendo saber se sua produção é boa dentro desses termos da crítica. E Rilke também fala que a palavra da crítica não toca no objeto artístico.
Quando um artista que ainda não floresceu, vamos dizer assim, marca a data para fazer o dízimo dele, ele vai fazer uma oferenda. Não vai ter nenhum juízo de valor, se o que ele está fazendo é bom ou ruim. Esse laço laboratorial d’A Noiva é formado a partir dessa intenção de fé. É muito mais sobre fé. E uma outra coisa também que a gente preza é esse lugar da fé e do fazer artístico como um fazer de autodignação e autoconhecimento. Então o objeto acaba sendo só testemunha desse processo de autoconhecimento. O foco, aqui, não é o objeto. Por isso que, nas oferendas, a gente coloca as pinturas no chão, fora da moldura. As esculturas também vão fora do pedestal. E as peregrinações são na rua, né? Também, ainda, muito focado nessas duas máximas que a gente ouve, que são “a arte como salvação, a arte vai salvar o mundo” e “a arte democrática”... O artista faz arte dentro do seu ateliê, e essa arte sai para as galerias e para os museus, onde as pessoas que visitam esses lugares já foram ensinadas ou já têm certo tipo de código para ler esses fazeres. Enquanto na rua, você tem uma relação muito mais direta. Então as peregrinações e as oferendas que a gente faz na rua têm um pouco disso, romper essas fronteiras.
HUO: Você disse que tudo é fé, que a mesma fé que leva uma pessoa à igreja, de qualquer religião, leva também uma pessoa à arte. Gerhard Richter diz que a arte é a mais elevada forma de esperança. Você fala de fé, ele fala de esperança. Qual é a sua definição de arte?
MA: Definir arte, em algum lugar, parece sempre pretensioso. E quando você nomeia alguma coisa, quando você começa a delinear alguma coisa, ela perde a sua potência. Mas, para mim, a arte é um fenômeno mental, interno, que está no espírito, que pode vir a ser tudo enquanto materialidade. Enfim, é isso.
HUO: Uma coisa que a gente não discutiu da última vez apesar de termos falado sobre seus trabalhos com papel pardo... Eu vi fotos do seu estúdio completamente coberto com papel pardo. É quase como se o estúdio virasse uma instalação. Você poderia falar um pouco sobre o seu processo criativo no seu estúdio? Porque, de fato, é uma instalação.
MA: É, essa questão é muito interessante. Embora eu trabalhe com um monte de outras mídias, como fotografia e vídeo, minha série mais famosa é Pardo é papel, uma série que nasce desse lugar de falar de orgulho preto. Por mais que, para mim, isso já tenha sido muito dito, para o mundo, ainda é uma faísca. O termo pardo foi usado para o embranquecimento. Quando eu pinto corpos pretos no papel pardo, é uma maneira de inverter essa narrativa. Eu venho da pintura abstrata. E, nesse processo de criar essa série, que é uma série mais autobiográfica – eu falo isso no sentido de que é mais fácil identificar que ela é autobiográfica, porque ela é figurativa –, mas tudo que eu faço é autobiográfico, de alguma forma. Em 2015, 2016, eu fiz umas pinturas abstratas, usando uma tinta parda, para poder voltar com o papel, usar a tinta parda como se ela fosse uma borracha. Porque, como o fundo do papel é pardo, se eu pinto por cima, eu perco ele. Esse recurso de fazer uma tinta com a cor do fundo é uma maneira de voltar atrás. Teve um dia em que eu peguei essas pinturas abstratas e comecei a pegar essa tinta parda e a cobrir tudo que eu não gostava na pintura. Eu não tinha tanta consciência do que eu estava fazendo. Mas, depois, algum amigo entrou no estúdio, olhou para aquelas pinturas e falou: “Pô, você está criando máscaras aí, está escondendo as coisas.” E aí esse termo pardo mais uma vez se colocou como esse lugar de esconder alguma coisa, para mascarar ou esconder a negritude, ali eu estava usando ele como esse mesmo recurso. Entendi que o pardo tinha esse lugar mesmo, de esconder. E aí eu comecei a ir para os objetos, a envelopar os objetos com papel pardo. A empardecer os objetos. E a potência da arte é justamente essa. Porque a arte, ela é imprevisível.
Em Pardo é papel, eu estou falando de pardo como um desígnio pejorativo agora, já que ele esconde a negritude. Quando você tem um ambiente todo envelopado de papel pardo, ele se torna homogêneo porque fica tudo pardo. Você entra num ambiente completamente lavado. E a forma dos objetos é enaltecida por esse padrão de ser tudo pardo. O pardo é trabalhado como um recurso para esconder, mas, na contramão, ele aparece como um recurso para enaltecer e enfatizar. Esse experimento de empardecer um ambiente inteiro me trouxe isso, que vai completamente na contramão do que eu estava querendo dizer. No ponto de vista do ativismo, isso pode ser muito problemático, estamos num momento de falar de orgulho negro e de renegar o pardo, que traz essa carga tradicional de esconder.
Meu experimento em arte mostra esse outro lado, que é do pardo como enaltecimento. Essa instalação que você está falando provavelmente foi do estande que eu fiz na Art Basel, onde eu fiz um takeover e envelopei o estande inteiro. Eu precisei envelopar meu estúdio porque eu estava trabalhando para esse takeover, e eu queria ter essa atmosfera aqui, para conseguir manipular e prever melhor os resultados. Toda vez que eu envelopo algum ambiente, isso faz parte da série Confidência, que vem também do conceito de confidencial mesmo, né? O envelope pardo, que a gente usa para mandar cartas pelo correio, é um envelope confidencial... Ele é pardo, ele tem essa característica de padronização.
HUO: Uma coisa que também me deixou curioso foi a conexão com a música. Você já falou um pouco sobre isso hoje e quando nós nos conhecemos, na primeira entrevista. Mas, ontem, nós fizemos uma entrevista ótima, para o livro também, com o Emicida. Falamos sobre rap, sobre ativismo e sobre a política que envolve o rap. Os títulos dos seus trabalhos são muito políticos e alguns são inspirados no rap. Não foi pedindo licença que chegamos até aqui faz referência direta a “Abre caminho”,⁶ do Baco Exu do Blues, que é famoso pelas letras politizadas. Você pode falar um pouco sobre essa conexão com a política, com o ativismo e com o rap?
MA: Eu não me considero ativista, mas minha existência por si só já acaba incorporando noções e atitudes do ativismo. Por eu ser quem eu sou, e por ter nascido aqui, na favela da Rocinha, e por estar agora ocupando um espaço de prestígio enquanto artista, isso vai reforçar esse lado, em alguma instância, de ativismo. Mas também não quero ter essa bandeira ou esse peso que um ativista pode carregar. Eu gosto muito do espaço da arte como um espaço da vadiagem...
Quando eu estava fazendo pintura abstrata, ou fazendo um trabalho para falar do espírito ou para falar da alma, eu não tinha voz. Mas, a partir do momento em que eu falo sobre o corpo negro político, isso começa a ser uma voz relevante. Isso me incomoda. O lugar do negro ainda está muito guardado nessas questões. Se você é preto, e é da favela, e é artista, sua arte tem que ser política. Em algum lugar, essa carga, ou essa leitura, é um lugar em que mais vão tentar encaixar o artista preto. O artista preto tem menos espaço para falar das questões sublimes, do espírito. O seu lugar fica muito mais seguro quando você falar do corpo preto político. E meu trabalho passa por isso. Mas eu também entrego com excelência um trabalho resolvido dentro das questões plásticas e poéticas. Então eu consigo me assegurar nessas questões. O rap, inclusive, passa muito por isso, é uma arte que nasceu nesse contexto da política, mas hoje já começa a ir também mais para o lugar do descompromisso, né? O trap, por exemplo, que é um subgênero do rap, passa por essas questões. Eu faço até uma analogia, o trap está para o rap como a pintura abstrata está para a pintura figurativa. Os cantores de rap estão muito mais preocupados com a sonoridade. Você vai pegar o Playboi Carti, por exemplo, ele fica repetindo a mesma palavra, ele fica quase tirando a voz dele e jogando só ruído ali. Isso é sair desse compromisso e flertar com as questões que são inerentes ao campo da linguagem plástica mesmo. A produção dos artistas plásticos é produzida majoritariamente a partir da poesia branca europeia. Então os caras vão ler [Friedrich] Nietzsche, Italo Calvino, enfim. Quando eu pinto a partir de Baco Exu de Blues, do BK’ e do Djonga, é uma afirmação que eu estou fazendo. É pautar uma produção em artes plásticas a partir de uma poesia preta e periférica, e de artistas que são brasileiros, que têm vivências congruentes à minha.
Na minha exposição no Palais de Tokyo,⁷ em junho de 2021, eu vou levar uma subsérie de Pardo é papel, um desdobramento que é chamado de Novo poder. Eu considero a arte contemporânea como um novo poder, por ser um campo onde existe uma quantidade significativa de capital financeiro, né? Capital simbólico, capital social, mas, sobretudo, capital intelectual. Essa exposição vai ser focada somente num tema, que é a comunidade preta dentro desses espaços de contemplação de obras de arte, que são os museus e as galerias. E por que eu estou falando isso? Porque um dos meus interesses é chamar a atenção da comunidade para esses espaços de legitimação de narrativa e história, que são as galerias e os museus. Só que, ao mesmo tempo, é isso, eu estou aqui no meu estúdio, eu moro aqui na Travessa Mesopotâmia, na Rocinha, que é uma das travessas mais movimentadas, e, ao mesmo tempo, pintura aqui não é um valor. Eu estou fazendo a minha vida, estou abrindo espaços de poder, de prestígio, ganhando dinheiro com isso, mas isso não é um valor, porque não faz parte dos valores daqui. Quando eu abrir uma exposição no museu, a comunidade não vai. Quem entrega essa experiência do sublime e do transcendental para a comunidade são as igrejas neopentecostais. Essa noção de você chorar diante de uma obra de arte, ou de você se emocionar diante de um [Mark] Rothko, isso tudo faz parte de outro ritual, de outros tempos, de outras fés, que não é a fé daqui. E, aí, o nosso interesse, até com a Igreja do Reino da Arte, é fazer esse cruzamento entre religião e arte. Entender que tudo é fé. Quando eu pinto um verso de rap, como o rap é uma expressão artística que é tida como uma das vozes da periferia, é uma maneira de diminuir esse abismo. Porque o cria aqui da rua, o menor aqui da rua, ele ouve BK’, ele ouve Djonga, ele ouve rap, ele ouve funk. Essa é uma arte que é mais assimilada aqui. Então é quando eu me aproximo desse campo do rap, tentando fazer essa aproximação entre o mundo da arte e o mundo da favela.
HUO: Na última vez que nos falamos, eu perguntei sobre as suas influências. Eu perguntei quem eram os seus mentores ou os artistas de gerações passadas que haviam inspirado você. Talvez a gente não deva usar essa noção de inspiração, mas, sim, seguir o que diz Denise Ferreira da Silva. Ela diz que não é uma questão de considerar pensadores ou artistas que a inspiraram, mas, antes, considerar filósofos ou escritores com quem ela pensa. Então eu estava me perguntando quem são os filósofos, ou poetas, ou músicos - mas também os artistas visuais -, de gerações passadas, que são os seus mentores, com quem você está pensando.
MA: Em vários momentos da sua vida, você tem mentores diferentes, tem pessoas que vão passar ali e vão ficar do seu lado, acompanhando, desenvolvendo junto, auxiliando. Um dos maiores mentores que eu tenho é o Raoni [Azevedo], que está aqui do meu lado. A gente se conheceu em 2011, já tem nove anos que a gente está trabalhando junto, desenvolvendo junto, pensando junto. O primeiro [mentor] é o Raoni justamente pela quantidade de tempo. Eu tenho um outro amigo, Raphael Medeiros, que trabalha com vídeo. Ele foi um dos meus mentores em algum momento. Minha mãe também, de certa forma. O Evangelho tem uma contribuição muito grande na minha vida – e que passa pela minha mãe. Essa noção do artista como ser iluminado e autocentrado, passa por essa profecia, por essas narrativas proféticas que o Evangelho constrói. E minha mãe reafirma isso para mim desde pequeno. E isso passa por outros ensinamentos aqui da favela, né? Desde “não se envolver com o tráfico de drogas”, ou “não ir para o alcoolismo”, ou “não ir para outras drogas”... Isso passa pela minha mãe também.
Artisticamente falando, tem uma quebra de mundos, que foi esbarrar com o Eduardo Berliner, artista, pintor, que dá aula de Plástica na PUC-Rio, onde eu estudei. E eu entrei para a faculdade para estudar Design Gráfico, Comunicação Visual. Esse curso do Berliner foi meu primeiro contato com a arte contemporânea, foi o lugar onde eu me senti mais em casa. Porque a arte, de alguma forma, contemplava toda a fragmentação da minha prática e do meu ser mesmo, de lidar com fotografia, com cinema, com música. O Berliner com certeza foi um grande mentor. Eu sempre fui um garoto muito atento. Mas com o Berliner eu aprendi que eu era atento. Porque ele questionava... A gente levava um desenho para ele com carvão numa folha A4, ele perguntava por que o carvão, por que não caneta Bic, por que não tinta guache. Por que esse formato, por que esse suporte. E esse exercício foi muito importante para a gente aprender a ter mais consciência das nossas decisões enquanto artistas. Essa foi uma das maiores chaves, entender que arte contemporânea também é sobre atenção.
Tem o Fernando Cocchiarale, que foi meu professor de Filosofia da Arte. Ele foi um grande mentor. Eu me lembro que existia o estigma da complexidade da história da arte, né? Fernando Cocchiarale tem muito carisma, a gente chama ele de Shaolin, porque ele parece uma enciclopédia ambulante. E é uma pessoa com quem eu gosto muito de trocar. Teve também a professora Roberta Portas, a professora Lídia Saramago, ambas contribuíram para a minha formação. E, de artistas, quem acaba me influenciando mais são os meus amigos que estão próximos: Edu de Barros, Cosme São Lucas, Raoni Azevedo e o Gabriel Moraes. Eu sou muito grato por ter eles por perto, porque a gente conseguiu criar esse celeiro de crítica e de produção enquanto arte.
HUO: Você disse: “Eu tenho que abrir mão de algumas das minhas ambições. Eu quero tudo muito rápido.” Você ainda é muito jovem e você quer muitas coisas. Isso me leva à próxima pergunta, que é a pergunta sobre projetos não realizados. Eu sempre fico interessado em saber sobre os projetos não realizados dos artistas. Porque artistas muitas vezes têm projetos que eles não podem realizar nas galerias ou nos museus que existem. E eu tenho interesse em entender como nós podemos fazer esses projetos acontecerem. Então é por isso que eu sempre faço essa pergunta. A razão é bem pragmática: encontrar formas de possibilitar que os artistas realizem seus projetos que não foram realizados. E, claro, existem muitos motivos para que um trabalho não possa ser realizado. O trabalho pode ser grande demais, caro demais, ele pode ser utópico. Mas também pode ser um projeto que foi censurado. Então eu queria saber, considerando a sua grande ambição, se você poderia falar um pouco sobre os seus projetos não realizados, suas utopias.
MA: Raoni acabou de me lembrar de um projeto que nem estava aqui na minha cabeça, que é o Futebol sem gol, que é um projeto ambicioso, que começou em 2016, 2017, que foi um momento em que eu ainda não era um artista integrado, não era conhecido, não vivia do meu trabalho. Eu estava terminando a faculdade e isso vinha com várias pressões sociais. Já existiam cobranças, de todo o meu entorno, de dar certo na vida. Tem essa frase que é muito marcada culturalmente, “vencer na vida”, você ser alguém na vida. Eu queria diluir esse peso. Um dia eu comecei a escrever: “Eu não quero vencer na vida, eu não quero chegar a lugar nenhum, eu não quero fazer o gol, eu vou chutar na trave.” E, aí, a partir dessa reflexão e dessas notas, eu pensei em fazer uma partida de futebol em que você não pudesse fazer gol. E eu cheguei a fazer alguns experimentos aqui na favela, nas escolas e nas quadras. Eu cheguei a gravar umas sete partidas desse esporte, que seria o “futebol sem gol”, em que você tem dois times adversários, jogando um contra o outro, e você não pode fazer gol. Existem algumas questões filosóficas aí, você não tem perdedor, nem campeão. Você não teria necessariamente um objetivo, é uma partida que vai se aproximando mais da arte, não tem uma finalidade prática durante o fazer. Quando eu comecei a gravar, eu comecei a me deparar com coisas que não funcionavam. Por exemplo, a última turma que eu gravei, foi numa escola pública chamada Paula Brito, que fica no alto do morro... Eu falei que os alunos não podiam fazer gol, e quando alguém fazia gol, todo mundo ficava meio triste. Aí voltava para o meio de campo a bola. E aí, quando eles descobriram que a coisa era chutar na trave, eles começavam a querer chutar na trave. Então não sei se esse era o caminho. Tem um monte de questões desse projeto que eu teria que experimentar na prática. É um projeto que eu não sei se eu vou conseguir realizar ainda, eu cheguei a testar, mas que está no caderno.
Outra ambição é ter um estúdio grande mesmo, onde eu consiga trabalhar em várias frentes ao mesmo tempo: audiovisual, fotografia, vídeo e cinema. Agora eu comecei a trabalhar com música também, eu lancei um álbum recentemente, chamado Anjo Maxwell. Está no Spotify, meu interesse por música cresce cada vez mais, muito por essa proximidade que eu tenho com os rappers que influenciaram o Pardo é papel. O BK’, hoje em dia, é um grande amigo. Essa proximidade com o Djonga... De ir ao estúdio com os caras, de ir ao estúdio com o Baco. E, agora, com o Cosme São Lucas, que é um artista que trabalha com música e que trabalha comigo todos os dias, então a gente tem feito algumas parcerias nesse sentido. Me interessa muito trabalhar com moda, desde confecção de roupa até passarela mesmo. Andy Warhol trabalhava num espaço que ele chamava de Fábrica,⁸ me parece ser esse o caminho para onde eu gostaria de ir, ter um complexo, um galpão gigante. Um estúdio onde eu estivesse lidando com todas essas frentes: ter um ateliê com um estúdio de música, com setor para fazer moda, com um setor para fazer experimentação de vídeo. E continuar com a pintura e com a instalação.
Para essa primeira exposição, com as primeiras pinturas de Pardo é papel que eu fiz entre 2017 e 2018, que eu estou chamando de A vitória gloriosa, que eu estou chamando de “primeiro álbum”. Essas pinturas fazem parte de uma exposição itinerante que está viajando o Brasil e o mundo. Passou por Lyon, está no MAR [Museu de Arte do Rio], ano que vem vai para o The Shed.⁹ E, quando essa exposição passou pelo MAR, a gente fez a performance de Pardo é papel. Que foi feita em um palco, com uma pintura com padrões de piscina Capri dourada, e os rappers performando suas músicas, três músicas - três do Baco e três do BK’, e a gente fez essa performance na inauguração da exposição Pardo é papel no MAR. Esse dia foi o dia em que eu mais conseguir ver esse ponto estratégico que eu estava falando lá atrás, de chamar a atenção da comunidade preta e periférica para os museus. Porque são artistas que estão circulando nesses lugares da periferia. E, quando a galera ficou sabendo que ia ter essa performance, o museu ficou completamente lotado. Se você for ver o registro, tem a galera andando pelo museu, pelas pinturas... Existia muito um sentimento de pertencimento àquele lugar... E, normalmente, os lugares onde a arte está são lugares hostis, né? E minha preocupação era sempre essa: eu, enquanto artista preto, ter uma vernissagem onde a audiência é branca, e os pretos vão estar sempre naquele lugar de subserviência, servindo o coquetel ou limpando o chão. E outro projeto grande que eu gostaria de fazer é justamente conseguir realizar uma performance cruzando todos esses artistas, né? Desde o Frank Ocean, a Solange, até o Tyler. Esses três artistas que eu elegi para este segundo momento que vai ter agora, em Londres... Cruzar com os artistas aqui do Brasil: Baco, BK’ e Djonga. Conseguir fazer uma performance de Pardo é papel com esses artistas, esse é um dos projetos ambiciosos que eu tenho também.
HUO: Agora, sobre a série na qual você está trabalhando. Porque, de certa maneira, você a evocou antes. Eu queria entender melhor como funciona o sistema. Você tem os títulos das séries e os títulos dos trabalhos dentro das séries. Você poderia falar um pouco sobre a forma como você trabalha as suas séries? Qual é o conceito por trás das séries? Porque, por exemplo, Reprovados é uma série. É quase como que um guarda-chuva. E, aí, dentro desse guarda-chuva, as pinturas têm títulos individuais. Às vezes os títulos têm a ver com rap, às vezes têm a ver com lugares específicos. Mas há esses títulos que funcionam como uma espécie de guarda-chuva. Reprovados... Você pode me explicar um pouco sobre isso? Porque me interessa entender essa ideia de artistas como criadores de mundos. Então eu estou procurando entender o sistema da criação do seu mundo.
MA: Tendo vindo de onde eu vim e estando na situação em que eu estou, é quase como se eu não tivesse muito tempo para perder. Tipo: “Como assim você vai passar um ano numa pintura?” Não faz parte da minha realidade passar um dia em um desenho. Minha pintura é muito taquigráfica, tem um caráter de anotação, ela está muito a serviço de um pensamento. Passou uma ideia pelo pensamento, eu vou e “anoto em pintura”. Isso acaba gerando muito trabalho mesmo, Eu tenho uma coisa de cronista. Eu gosto de contar algumas histórias, e elas vão se desdobrando em outras histórias, que partem de uma realidade, mas também partem de uma noção de criar futuros especulativos. Eu trabalho na criação de uma mitologia própria. E dentro disso, eu vou criando séries para falar de assuntos específicos. Por exemplo, Reprovados fala de um assunto muito local. O símbolo principal de Reprovados é o uniforme da escola pública [do município do Rio de Janeiro], aquela camisa branca com a faixa azul. Ou seja, é uma questão muito local. Óbvio que essa série toca em pontos universais também, mas ela está muito focada na periferia carioca, nas questões da favela mesmo, na falência do sistema de educação, no conflito da polícia com a comunidade, em questões de racismo também. Ela é mais ácida, ela fala de confronto, ela fala de dizimação da população negra, da precariedade do sistema carcerário.
Dentro disso, eu resolvi falar de outro assunto, numa série que chama Caravelas de hoje, que aborda o translado do corpo negro no mundo contemporâneo. E esse assunto surgiu quando eu fui fazer uma exposição numa feira, junto com o Arjan Martins. O Arjan Martins é um pintor que também trata dessas narrativas do corpo negro, mas ele pinta esse translado do corpo negro a partir de uma perspectiva histórica. Então ele vai usar, de fato, as caravelas, os navios negreiros. Quando eu recebi esse convite, eu pensei em fazer um diálogo direto com o Arjan. E, já que minha obra trata de uma questão mais contemporânea, isso me fez pensar no que seriam as caravelas de hoje. Então eu comecei a pensar nas narrativas do BRT¹⁰ lotado, do “busão” lotado, do metrô. E de todos esses transportes públicos que precarizam a ida e a vinda da periferia para o Centro. E isso me fez pensar que os tempos das caravelas não mudaram tanto assim. O que a gente tem, hoje em dia, são tecnologias que nos distraem no nosso percurso, o smartphone, por exemplo. Ou a música. Mas a situação continua sendo bastante precária.
Outra subsérie - que parte de Reprovados é uma série chamada Redenção, de pinturas de crianças no chão, em posição de atenuação mesmo, se protegendo. São dias de conflito, né? Quando a polícia está conflitando com o tráfico e, aí, as aulas param, e as crianças têm que ir para o chão, ou até as pessoas dentro das casas também. Esse é um assunto tão forte dentro de Reprovados que ele merecia um recorte específico, essa série chamada Redenção.
Pardo é papel vai na contramão de Reprovados. É uma série que fala sobre bonança, vitória, ostentação, marra, empoderamento. Dentro de Pardo é papel, eu criei uma outra série, que foi a que eu apresentei na [Art] Basel, que se chama Golden shower, abordando aquele tuíte do [Jair] Bolsonaro que causou um alvoroço. O golden shower é uma performance, vamos dizer assim, sexual que acontece ali e trata de questões que passam por certo tipo de escatologia, quando você urina no seu parceiro durante o sexo. E isso pode cair no lugar do fetiche. Mas, quando você substitui essa narrativa por corpos pretos, isso pode ser mais problemático. Eu abordo essa mesma questão na pintura Olhar embriagado no espelho, em que os personagens estão bêbados, estão embriagados. Quando eu coloco corpos pretos nesse tipo de posição... O racismo estrutural está aí para manipular o nosso senso, nesse sentido. Então quando você vê uma pessoa também bêbada, e essa pessoa não é branca, quando ela é preta, as questões pejorativas e estigmatizadas são intensificadas. Mas o importante é que o corpo negro esteja afirmando a sua liberdade de ser o que quiser em qualquer tipo de situação. Então é mais ou menos isso.
Os assuntos vão aparecendo, e eles vão ganhando uma importância, e eles precisam ser divididos mesmo. Então a gente tem Pardo é papel, que é tipo a série-mãe. Novo poder é uma série de Pardo é papel, porque eu estou falando só de corpos pretos contemplando arte. E ela é uma série muito forte também, porque eu lido com três signos. Ela é composta por três signos: pelo personagem preto, pelo fundo - que seria a arte, que seria o papel pardo também, então é uma série muito autorreferente - e pelo fundo branco - que é o cubo branco, a galeria.
Para essa exposição que eu vou fazer em Londres, acabei criando uma divisão nova. Como eu disse, é o segundo álbum, ou momento, de Pardo é papel. O “primeiro álbum” é A vitória gloriosa, o “segundo álbum” é Close a door to open a window, que são essas nove pinturas. Ver como os artistas organizam os seus lançamentos a partir de mixtapes, EPs e álbuns tem sido um parâmetro bom para eu conseguir catalogar minha produção. Mas essa organização é para quem está interessado nas questões mais profundas do meu trabalho, um quadro pode ter cenas de Reprovados, com a camisa de escola, mas o assunto ser de Caravelas de hoje. E às vezes vai ficando confuso, vai se misturando. Eu estou tentando entender.
HUO: Essa foi uma entrevista maravilhosa. E espero encontrar você em breve, no Brasil, ou em Londres, quando você for para a exposição, ou em Nova York, no The Shed.
MA: Sim, sim. Eu vou estar em Londres em outubro de 2020. E a abertura da exposição vai ser no dia 12 de novembro.
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1. Sonic, the hedgehog, franquia de videogame muito popular nos anos 1990.
2. Maxwell Alexandre se refere ao Gávea Tourist Hotel, situado em São Conrado, no Rio de Janeiro. O artista faz a performance Sangue negro no local, a qual pode ser vista no vídeo https://www.youtube.com/watch?v=yD0814GDE5s
3. Nome artístico de Abebe Bikila Costa Santos, rapper, escritor e compositor carioca, nascido no bairro de Jacarepaguá, na Zona Oeste da cidade. A arte da capa de seu álbum Gigantes, de 2018, foi feita por Maxwell Alexandre.
4. Nome artístico de Diogo Álvaro Ferreira Moncorvo, rapper nascido em Salvador, Bahia.
5. Nome artístico de Gustavo Pereira Marques, rapper de Belo Horizonte, Minas Gerais.
6. “Abre caminho”, faixa do álbum Esú, de 2017.
7. Palais de Tokyo, centro de arte contemporânea situado em Paris.
8. Em inglês, the Factory.
9. The Shed, centro cultural em Manhattan, em Nova York.
10. Sistema de transporte coletivo do município do Rio de Janeiro. Bus Rapid Transit, na sigla em inglês.
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Publicado originalmente em Hans Ulrich Obrist – Entrevistas brasileiras v.2, Editora Cobogó, Rio de Janeiro, 2021.
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