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2024
Vórtice
Por
Bernardo José de Souza

Sob os embalos da música, impulsionados por um malfadado golpe de vento, corpos são lançados numa espiral vertiginosa: já não dançam como se tomados por êxtase, mas são levados a executar uma última coreografia da destruição. Por um breve lapso de tempo, os céus parecem cair sobre a Terra, e, no horizonte, holofotes feéricos simulam estrelas a explodir na galáctica abóboda do prazer. A grande festa chega ao fim; restam somente as testemunhas do crepúsculo de uma era.

 

Desde o início de sua produção artística, Vivian Caccuri vem explorando a força invisível do som — ou da música, como preferir. A começar pelas monolíticas paredes de alto-falantes em suas primeiras instalações, seguindo pelo som vertiginoso de mosquitos invisíveis e, mais recentemente, suas picadas inaudíveis, bordadas em tableaux feitos de tule. Ao longo dessa trajetória, o trabalho de Caccuri oscila entre um hedonismo performático e as metastáticas armadilhas coloniais. O que poderia ser visto como uma ode aos rituais da dança logo se dissipa em um agourento presságio, como no caso dos mosquitos da febre amarela, bordados pela artista, que chegaram às Américas por via das rotas comerciais escravagistas partindo da África.

Sob as insidiosas ondas sonoras a emanar de suas obras, jazem criaturas, humanas ou não, afetadas pela natureza holística da vida, desde o nascimento até a morte, passando pelo renascimento, pela transformação, pela hibridização, pelo artifício e pela insurreição. Seja ao entrelaçar o som ao tecido, seja ao combinar história colonial e condições atmosféricas, a artista cria um universo onde forças visíveis e invisíveis se mesclam, onde matéria e espírito se embaralham de forma a produzir um efeito de retroalimentação a interromper a narrativa cartesiana forjada pelo Ocidente, violentamente imposta às demais culturas ao largo da história moderna.

Desta vez, todavia, a artista vai tocar ainda uma outra toada: gemidos abafados de prazer, gritos e uivos de uma multidão em face do iminente e traiçoeiro horizonte. Afinal, vivemos em um mundo precário onde a sombra do desastre está sempre à espreita — quando se espera apenas encontrar alegria, resta dor; e o que deveria ser festa se transforma numa desacorçoada celebração. De um lado, esta mostra pode ser vista como mais um épico espetáculo de música a fugir ao controle — e houve muitos deles em nossa história recente. De outro, bem pode ser entendida como uma poderosa metáfora do colapso capitalista, tal como do caos hedonista e do artifício sobre a vida.

A mão invisível é a primeira exposição individual de Vivian Caccuri dedicada quase exclusivamente ao desenho, uma prática que a artista vem exercendo na produção de seus painéis bordados, mas que nunca havia sido plenamente desenvolvida no papel. Aqui, as imagens adquirem forma por meio do carvão, do giz e mesmo do pastel. Como resultado, os corpos emergem do pó como almas fugazes, à la El Greco, distorcidos, alongados, como se evaporassem da Terra — “do pó ao pó, das cinzas às cinzas”, como diz a passagem bíblica. No torvelinho de angústias e desejos concebidos por Caccuri, o humano e a suposta paisagem se unificam em uma deriva psicodélica. A arquitetura desaba em meio a uma convulsão de corpos. O palco implode, as coreografias se tornam liturgias agonizantes, e a ilusão se rende aos destroços do espetáculo musical.

Porém, como contrapartida tridimensional ao cenário apocalíptico concebido pela artista, no espaço da galeria, jazem os restos precários de um palco destroçado: uma réplica de tamanho reduzido que apenas realça a exoperspectiva do público a observá-la de cima, como se assumisse um olhar divino. As maquetes das megaestruturas do show parecem tão carregadas e frágeis quanto a grande expectativa a envolver tais eventos, nos quais o elevado grau de antecipação está sempre, de algum modo, fadado à frustração. Portanto, a encarnação efêmera desse sonho coletivo é análoga à gratificação fugaz da sanha consumista — uma materialização espectral do desmedido desejo humano.

A artista nos confronta, assim, com o epílogo de um sonho cujo início idílico implicava um estado de transe, uma busca por transcendência e um sentido oblíquo de redenção. Mas quais são as armadilhas dos tropos contemporâneos da felicidade? Essa parece ser a elucubração principal que paira sobre a exposição. Todo o aparato por trás da indústria do entretenimento se enreda nos enigmas da existência humana, cuja miríade de maquinações internas fetichistas sucumbe à cultura material. E, na medida em que a tecnologia parece ser totêmica, um depositário de esperanças e fantasias, o colapso de tais estruturas se assemelha ao impulso de morte inerente à natureza humana. Eros e Tânatos operam em conjunto, como polos do mesmo campo magnético, inspirando desenhos abstratos de ondas sonoras entrelaçadas, abraçando o caos das multidões.

Ao mergulhar na experiência sinestésica de Vivian Caccuri — um vórtice de horror e beleza —, podemos ouvir o som silencioso de uma queda. Não há consolo que possa nos redimir.