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2024
Zenith
Por
Mateus Nunes

eu pensei
que a queda iria

me matar
mas ela apenas
me fez real ¹

 

A confluir grandiosidade e melancolia, Fran Chang utiliza-se da gênese de lugares plácidos como dispositivo de acolhimento. Em suas paisagens pintadas, estados de espírito inapreensíveis pela linguagem são retratados através de erosões, auroras e penhascos íntimos. Geografias táteis são elevadas em planos misteriosos, pondo-se entre a inexistência e a promessa, a fuga e o reencontro, a imensidão e a pequenez. A natureza flutua em seda, permitindo-se ser atravessada pela luz ao passo que se manifesta sólida, permanente, refletindo a incerteza dos caminhos que podem ser vividos nesses cenários liminares. O vazio é reiterado pela presença do lugar, assim como o escape da realidade é um dispositivo de fabulação a possibilitar uma existência plena. Em Zenith, Chang, de origem taiwanesa, acessa uma escuridão por muito tempo evitada e finalmente bem-vinda.

Mais do que a contemplação de cordilheiras, arquipélagos glaciais e firmamentos, a paisagem para a artista é foz de sentimentos catárticos e emancipadores, sobretudo atrelados à diáspora asiática. Diante da dilatação infinita que perfaz o horizonte, confronta-se com espelhamentos de experiências subjetivas, a indagar sobre a solidez de verdades postas e sobre o próprio querer. Ao enfrentar essa agigantada inquietação, Chang mergulhou, na universidade, em estudos sistemáticos em astrofísica e astronomia, de modo a tensionar crenças estabelecidas e a assimilar a frivolidade humana em relação ao cosmo. Deparou, portanto, com imensidades possíveis em si e há muito renegadas, dando ignição à revisita a episódios de sua própria história — e das cicatrizes e resistências da migração taiwanesa por sua mãe — ao observar atividades geológicas colossais, como a efusividade indomável de vulcões e as danças sinuosas e tremulantes da aurora boreal. Metáforas cosmológicas e geográficas mimetizam perdas, triunfos, redescobertas e traumas, como a dizer: contenho isso em mim.

Pacientes e silenciosas, as obras de Chang se propõem a externar atmosferas emocionais com postura disciplinada e honesta perante a própria pintura. A escolha da seda como suporte se deu pelo fato de a artista estar sempre cercada pelo tecido em casa, já que sua mãe, desde antes de imigrar para o Brasil, o privilegiava na costura das próprias roupas em uma Taiwan libertária. Quanto à reverência a tradições artísticas chinesas, Chang aproxima-se da rigorosidade da técnica gogbi, sobretudo nas detalhadas pinceladas com intenção realista. A escolha de paisagens contemplativas avizinha-se da tradição shan shui, em que se figuram montes, mananciais e cascatas, com sensibilidade à captura dos ritmos da natureza, de fluidezes energéticas e da possibilidade irradiadora de alma.

No plano pictórico, Chang guarda a linguagem, dobrando-a; na estrutura, a desvela. No verso das pinturas, sobre os veios da madeira lanhada que forma o chassi, Chang carimba com tinta vermelha seu nome em sinogramas em guóyǔ — variação do mandarim utilizada em Taiwan. Seu yinzhang — nome tradicional do milenar carimbo chinês — é feito com a caligrafia de sua mãe, que lhe advertiu que, nas tradições taiwanesas, ao colocar um nome em alguém, toma-se na mesma importância seu significado e a forma pela qual se o escreve. Seu nome taiwanês, 翴黀濆, significa “de acordo com a cor”, como em um prenúncio materno da mutabilidade e da sensibilidade da artista. Nomear alguém, portanto, é dotá-lo de escrita.

Ao timbrar as pinturas, Chang finca em repetição seu nome e (a língua) de sua família na estrutura usualmente invisível das serenas paisagens que apresenta — em uma anotação crítica à desvalorização do labor asiático nas dinâmicas produtivas, sobretudo o feminino. Em cisalhamento pelo imperialismo ocidental, as línguas chinesas apresentam-se como significantes de seus povos e culturas de forma tão potente “que linguagem e nação se sobrepõem, a última ocluindo a primeira; convergência tal que reduz a China a uma superfície, a uma face, a uma imagem, a um ideograma”.² Nesse movimento sinófobo, a língua é saqueada em esvaziamento linguístico e torna-se um estereótipo de cultura visual ornamental, opaco e impenetrável, que amalgama e comprime indistintamente multiplicidades culturais, idiomáticas e subjetivas.

Em contrafluxo, Chang propõe um deslocamento oposto ao supracitado: em vez de apresentar seu nome para ser desvelado sob uma ótica de floreios ou caprichos formais exotizados, reitera o sinograma em sua força linguística e nomeadora, retirando-o do campo figurativo em que foi posto pelo colonialismo e devolvendo-o ao âmbito semântico. Em sua prática, a artista endereça essas agudas pautas políticas em múltiplos vetores, dotando suas paisagens de elementos paratextuais de maneira a apresentar “uma obra que é cuidadosa em não transformar a luta em um objeto de consumo”.³

O título da exposição, Zenith, em inglês, é um termo utilizado pela astronomia e pela trigonometria para traçar um caminho imaginado. Toma-se como referência um corpo humano em pé, sempre perpendicular a um ponto de uma superfície esferoidal, e consideram-se, a partir dele, dois vetores ópticos: enquanto o “horizonte verdadeiro” é a interceptação da linha de visão com um chão, formando uma linha oblíqua e tangente, o zênite — ou “horizonte astronômico” — é a extensão perpendicular desse olhar agora apontado para o infinito cósmico, perfazendo um ângulo reto com o eixo do seu próprio corpo. Através dos sentidos, parece que se olha para cima, mas, a partir de uma visão abstrata em um espaço macrocósmico, se olha para frente.

Chang se relaciona com essa determinação espacial para reiterar que, embora dispersos entre infinitos outros corpos, temos sempre um ponto de vista particular. Por mais que partilhemos a mesma esfera celestial, cada indivíduo, em cada momento da vida, estabelece um ponto de vista único em relação com o cosmo. A artista toma sua perspectiva, negligenciada com ocorrências enfáticas no âmbito social por dinâmicas que aglutinam sinofobia e misoginia, como lugar altivo em que se vê um horizonte imaginado de olhos fechados — único portal capaz de alcançar o que nos é distante. Sentir o vento gélido que adormece a face é, agora, enfrentar destemidamente a queda no próprio abismo. Como estranhos em silêncio, congregamos uma intimidade perene, deslumbrados ao nos vermos, diferentes, no mesmo céu.

 

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Mateus Nunes é curador e pesquisador. Doutor em história da arte pela Universidade de Lisboa, desenvolve pós-doutorado em história da arte e da arquitetura na Getty Foundation e na Universidade de São Paulo. Seus escritos são publicados em revistas como Artforum, ArtReview, Flash Art, frieze, seLecT, Terremoto e ZUM.

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1. Ocean Vuong, Time is a Mother. Londres: Jonathan Cape/Penguin, 2022, p. 10. Tradução livre.
2. Oscar yi Hou, “On languishing, languaging, loving, aka: a dozen poem-pictures”. In: Oscar yi Hou. Nova York: James Fuentes Press, 2022, p. 14. Tradução livre.
3. Trinh T. Minh-Ha, When the Moon Waxes Red: Representation, Gender and Cultural Politics. Nova York/Londres: Routledge, 1991, p. 149. Tradução livre.