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2019
Sedução no limite
Por
Francisco Dalcol

Diante das obras de Túlio Pinto, somos invariavelmente acometidos por uma experiência impactante, a um só tempo também instigante e não menos desconcertante. Lidando com a tensão e o equilíbrio levados aos extremos de seus limites, suas peças e conjuntos escultóricos nos atingem como um sedutor apelo à visão, por conta da clareza, da concisão e da harmonia que emanam. Ao mesmo tempo, são obras que nos tornam conscientes da nossa presença, como parte integrante das situações que instauram; o que nos leva a perceber os nossos próprios corpos como parte constitutiva da experiência do ver e do sentir. Situados entre a escultura e a instalação — explorando, portanto, a tridimensionalidade e a espacialidade —, os trabalhos de Túlio Pinto resultam da elaboração de mecanismos e sistemas que exploram e articulam as potencialidades físicas e visuais dos materiais e das formas.  São pedras, blocos de concreto, vigas de aço, lâminas e bolhas de vidro, cubos e estruturas de metal; acoplados em intrincadas junções de peso e equilíbrio, que se sustentam por mecanismos de cabos, cordas, roldanas, barras, fitas de tecido, porções de areia e balões de borracha, entre outros.  Essas obras encontram sua linguagem visual e seu fundamento conceitual-poético não apenas na feição da matéria e nos modos com que é mobilizada e empregada; mas, sobretudo, nos tensionamentos e confrontos que estabelecem entre rigidez e fragilidade, força e resistência, equilíbrio e queda. Trata-se de uma produção orientada por um pensamento escultórico que lida, acima de tudo, com o movimento — ou, mais precisamente, com a sua contenção e anulação —, entendendo aqui a acepção mais tradicional, a da física mecânica, que define ser o movimento a variação de um ponto ou objeto no espaço em relação ao tempo.  Assim, frente a tais obras, somos seduzidos pelas operações que as engendram, pela visualidade que adquirem e, acima de tudo, por aquilo que insinuam, ameaçam ou sugerem estar momentaneamente interrompido — ou na iminência de acontecer. Levados a essa profunda e elevada experiência da percepção do visível e do sensível, somos mais do que apenas e meros observadores daquilo que as obras proporcionam, uma vez que passamos a participar de um espaço-tempo específico, porque são peças e objetos que se espacializam no tempo ao mesmo tempo que se temporalizam no espaço. Essas linhas de força que configuram, perpassam e contingenciam os trabalhos de Túlio Pinto podem ser ainda melhor percebidas e compreendidas ao se revisitar etapas de seu percurso e ao se situar alguns de seus desdobramentos mais significativos, à luz da história da arte e das práticas artísticas que se seguiram aos anos 1960. Com uma trajetória iniciada em pintura a partir de 2004, no Atelier Livre de Porto Alegre, Túlio Pintou estudou no Parque Lage do Rio de Janeiro antes de entrar, em 2006, no curso de Artes Visuais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Nos anos seguintes, migraria a ênfase de sua produção para uma prática escultórica entendida como campo expandido, dando corpo a uma obra que, sob o ponto de vista dos aspectos formais e processuais, encontra antecedentes na herança minimalista e em nomes como Anthony Caro, Charles Ginnever, Carl Andre, David Smith, Donald Judd, Giovanni Anselmo, Mark di Suvero, Richard Serra, Robert Morris e Tony Smith.  A mesma aproximação vale para as chamadas neovanguardas, a exemplo dos conceitualismos, da land art, das performances, das instalações, da site-specificity, do in-situ e das práticas que enfatizam o processo e o espaço. Não se trata, contudo, de encapsular a produção de Túlio Pinto em uma leitura estritamente vinculada a paradigmas críticos e teóricos, notadamente os de matriz norte-americana da segunda metade do século 20, operação esta dada como insuficiente. Até porque, em suas peças e conjuntos escultóricos, é também possível identificar aspectos ressoantes das vertentes construtivas da arte brasileira dos anos 1950 e 60, desde o pensamento geométrico das formas aliado ao pensamento sobre os materiais, a exemplo de Amilcar de Castro e Franz Weissmann até os diálogos estabelecidos com o vocabulário formal e conceitual de artistas brasileiros contemporâneos como Cildo Meireles, José Resende, Nelson Felix, Nuno Ramos e Waltercio Caldas.

EQUILÍBRIO PENDULAR, MOVIMENTO IMINENTE Pode-se dizer, de um modo geral, que a produção de Túlio Pinto é marcada por obras aparentemente simples, entretanto resultantes de soluções complexas, o que chama atenção para os postulados que engendram as práticas, os processos e os procedimentos.  Os objetos e estruturas em estado de tensão e equilíbrio, os quais o artista elabora com um pensamento escultórico a princípio mental e depois materializado em mecanismos que envolvem pesos, balanceamentos e equilíbrios, estruturam-se como sistemas de mecânica estática e dinâmica. É como se equações pudessem fornecer explicações matemáticas sobre as situações limítrofes em suspensão que Túlio Pinto cria, por mais impossíveis e inviáveis que possam por vezes parecer. São trabalhos que indicam estarem sempre “prestes a”, “na iminência de”, por isto a sensação de permanente tensionamento que perpassa um campo de forças atrelado às leis da física – lidando, em especial, com a gravidade e a resistência dos materiais –, o qual também envolve e atravessa os corpos e olhares que nele se inserem. Comenta o artista: “A gente consegue se perceber e se esculpir a partir dos limites. Nesse sentido, o trabalho é uma ponte para me apontar um certo entendimento de mundo que eu até então não tinha. Por isso, ele também está me esculpindo” . É o caso da série de instalações escultóricas “Nadir”, cujos trabalhos tensionam as noções de equilíbrio e limite, com as grandes lâminas de vidro que se mantêm inclinadas por força de arranjos de cordas equilibrados pelo peso de pedras em situação pendular. Nas diferentes configurações que esses trabalhos assumem, evidencia-se um acentuado parâmetro gráfico, se considerarmos que os percursos das cordas, bem como os planos sugeridos pelos materiais que elas coordenam com a força investida na sustentação das estruturas, sempre oferecem imagens que parecem resultar também do ato de desenhar no espaço.  Ao fim, são construções que aparentam se guiar por processos de antiengenharia e que lidam com a tensão tanto no contraste entre materiais rígidos e frágeis quanto nos pontos de estabilidade das estruturas, estas sempre parecendo prestes a cair. Criam, assim, uma espécie de campo imantado por exercer atração sobre nossa presença, mas que nos deixa hesitantes quanto à aproximação, por conta da sensação de risco e aparente instabilidade que os trabalhos insinuam à nossa percepção.  É o que também oferecem as obras da série "Compensação", novamente com grandes lâminas de vidro que atravessam o interior de um cubo de aço vazado e se apoiam na lateral de outro cubo, formando também uma situação de equilíbrio em suspenso, ou de movimento em anulação. O mesmo se dá em “Cumplicidade”, série de objetos escultóricos em que balões de vidro estão sempre tensionados pela pressão do peso exercido por vigas de aço, formando arranjos intrigantes pelos aspectos formais das peças e pelo confronto entre a rigidez e a fragilidade dos distintos materiais.  Os trabalhos da série “Cumplicidade” não só dialogam como oferecem um desdobramento em relação à outra série, “Tempo”, estruturada com blocos de concreto apoiados em balões de borracha junto à parede. Túlio Pinto apresenta o trabalho em diferentes configurações. Foi na versão com três balões e três blocos de concreto, colocados lado a lado, que o artista lidou com uma revelação a respeito do seu trabalho: os materiais empregados, ainda que seriais e industrializados, não se comportam homogeneamente. Ao longo de mais de 30 dias de exposição, no Paço dos Açorianos de Porto Alegre, em 2009, o conjunto se comportou simultaneamente de modo diverso – um balão ficou quase totalmente esvaziado, outro conservou um pouco do ar, e o terceiro praticamente permaneceu inalterado. Comenta Túlio Pinto: “Descobri não só as propriedades voláteis do ar e dos balões, mas que os materiais, mesmo sendo industriais, não são iguais e reagem de forma diferente. Isso me faz pensar os materiais a partir de problemas, digamos, de ordem pessoal/individual. É como se houvesse um caráter de individuação dos objetos”. Nesse sentido, encontramos o entendimento de um caráter performático dos materiais e objetos, aspecto que passou a ser melhor apreendido por Túlio Pinto no momento que recorreu à linguagem fotográfica para dar conta dos diferentes deslocamentos efetivados pelos conjuntos e arranjos. Com o simples gesto de registrar fotografias de “um antes” e “um depois” dos três tempos oferecidos por “Tempo”, o artista documentou diferentes estágios de movimento, obtendo uma constatação capaz de refutar qualquer caráter estático em sua prática escultórica. Se em “Tempo” os balões com ar são pressionados por blocos e vigas, oferecendo uma obra que se constitui enquanto duração, “Cumplicidade” dá a ver um instante único da transição dos balões de vidro do estado líquido para o sólido, aquele definido pelo estágio final-e-estabilizado da força exercida pelas vigas sobre o vidro que se torna maleável por força da temperatura elevada a que é submetido, e que em cada trabalho assume feições formais distintas. É como se no processo ocorresse uma espécie de impressão sobre o vidro, lembrando a monotipia, o que acaba por conferir também aqui uma certa individuação dos objetos, ainda mais se levadas em conta as diferentes formas resultantes. Guiando-se por um fluxo criativo cambiante, de transferências de materiais e desdobramentos conceituais, é como se cada projeto realizado por Túlio Pinto retroalimentasse os seguintes. Vidro, concreto e aço, aliás, migram de um projeto a outro, sendo (re)incorporados de modo a apontar novos trabalhos. Diz Túlio Pinto: “Quando um pintor fala que começa a pintar e que rola uma conversa com a pintura, que a tela começa a pedir certas coisas, isso acontece também na escultura, com os materiais que vão dizendo, apontando algumas direções. Os materiais vão migrando, e os trabalhos vão acontecendo”. Embora tenha a compreensão de que seus projetos escultóricos já estejam dados ainda enquanto pensamento, na etapa precedente à execução e materialização do projeto, é de fato na ida ao espaço que eles acontecem. Entram em funcionamento, se assim se pode dizer, a partir dos experimentos possíveis pelo jogo engendrado pelos materiais, objetos, encaixes e equilíbrios. Trata-se de um procedimento que reivindica o caráter experimental do processo de execução. “A ida ao espaço é para materializar o trabalho no próprio espaço. Aí, começa o jazz. Pode ser que aconteça, ou seja diferente. É coisa de perceber o peso das peças e os balanceamentos que oferecem”, diz Túlio Pinto.  E aqui podem ser abertas outras questões, como quanto à noção de inseparabilidade física entre o trabalho e seu local de instalação. Ou seja, o caráter enraizado da obra, como na tradição da arte site-specificity. Os objetos e as estruturas que Túlio Pinto arranja e ordena no espaço são dados à mobilidade e à possibilidade de transferência em relação ao seu site-specific, sejam eles orientados pela arquitetura ou pela paisagem. Mesmo fazendo do espaço instalativo um lugar real , com uma realidade tangível configurada tanto pela posição do observador quanto pela presença da obra – por isto fenomenológico –, Túlio Pinto cria projetos em resposta a um conjunto de circunstâncias, mas podendo ser deslocados para outros espaços sem perder sua força e potência. Ao contrário, encontrando na recontextualização das realocações temporárias novos significados, muitas vezes mais precisos e adensados. Isso se dá não somente no espaço expositivo, mas também no espaço público. São diversos os trabalhos de viés escultórico-performativo que Túlio Pinto já realizou em áreas abertas, sejam elas naturais ou urbanas, o que estabelece vínculos com a chamada arte pública ou mesmo com as realizações da land art.  O vídeo “Unicórnio” é exemplar. Realizado em temporada de residência em Phoenix, nos EUA, consiste em uma performance de um homem vestido todo da cor laranja, com a máscara de um unicórnio, tendo saindo das costas extensos balões em formato de tripas que se suspendem no ar em um território natural, circundado pela topografia de montanhas e rochas. A beleza que parte da situação encenada no vídeo – até certo ponto surreal – advém, em grande parte, de um entendimento de haver ali uma situação performático-escultórica interagindo com a fisicalidade da paisagem natural a partir da criação de um universo ficcional. Esses balões, em formato “salsicha” e de cor alaranjada, migraram de outros trabalhos, e continuam migrando. Na série “Linhas”, eles igualmente instauram esculturas em suspenso, flanando no ar, como que estruturas rizomáticas brigando por sua verticalização. As ações são realizadas tanto em espaços fechados quanto abertos, muitas vezes em lugares de passeio como parques, gerando toda uma situação relacional com os passantes que se tornam público ao comungarem do espaço projetado pelo trabalho. Resulta desse procedimento um caráter orgânico de mobilidade e flexibilidade, entre o durável e o temporário, dado que são trabalhos escultóricos e performáticos efêmeros apresentados enquanto uma duração.

ESCULTÓRICO, TRANSITIVO E SUCESSIVO Entendendo que o movimento do corpo no espaço e no tempo é também um ato escultórico, há trabalhos de Túlio Pinto de certo caráter performativo em que o próprio corpo se ausenta, não se deixando ver, e passando a apontar para a já referida performatividade que se dá no nível dos materiais. É o caso da residência realizada no âmbito do IZOLYATSIA – Platform for Cultural Initiatives, em 2014, em Donetsk, na Ucrânia. A primeira surpresa foi o impacto do corpo frente à realidade estranha: “Nunca tinha estado em lugar de neve até então. Tive que reaprender a me movimentar, ficar ereto... E todo o entendimento que eu tinha de equilíbrio caiu por terra”, conta o artista.  Túlio Pinto se deslocou ao país propositalmente no inverno, porque desejava usar a neve e o gelo como materiais. Ou melhor, o degelo como instrumento de índice de tempo. Os trabalhos resultantes lidaram com o efeito material das trocas térmicas e a consequente implicação de tempo nas passagens entre estados físicos – ou seja, falando também aqui de movimento. A linguagem fotográfica foi acionada para capturar a temporalidade dos trabalhos realizados, com especial atenção aos deslocamentos observados na transição da matéria entre um estado e outro. O que remete, assim, a procedimentos ligados à arte conceitual.  É o que se vê em “Waiting room”, que mostra duas imagens do que parece ser um bunker ocupado por cadeiras enfileiradas e alinhadas como soldados de um exército. Na primeira imagem, o conjunto de assentos está harmonicamente inclinado para o mesmo lado por conta dos blocos de gelo colocados como calços. Na segunda, as cadeiras aparecem na posição normal no solo, e as poças de água formadas no chão indicam que o processo de derretimento devolveu a estabilidade ao conjunto. Entre o primeiro e o último registro, passaram-se 18 dias.  Procedimentos semelhantes se dão em “Land line # 7”, composta por fotografias que documentam uma estrutura metálica de cubo vazado presa a um grande bloco de gelo, que só some quando a neve também desaparece. Fotografando etapas da duração de um momento a outro, Túlio Pinto obtém aqui um efeito de escultura em movimento no espaço-tempo, a partir do deslocamento ocorrido entre a mobilidade e a imobilidade dos materiais e das estruturas. No entendimento do artista, “os trabalhos na Ucrânia foram resolvidos fotograficamente, mas tratam-se de instalações, da performatividade dos objetos e materiais”, pois “o gelo demorou o tempo de duração da residência para derreter”.  Não foram somente o gelo e a neve as matérias das quais os trabalhos se valeram. Ao chegar à Ucrânia, Túlio Pinto deparou com o alcatrão processado, que de imediato chamou-lhe atenção por sua forma, cor e textura. Esse resíduo negro e viscoso – utilizado amplamente para a fabricação de produtos químicos e cujo principal derivado é o piche – foi apropriado para um trabalho. Ou melhor, manejado.  Em “Time cut”, um cubo de alcatrão moldado industrialmente é atravessado por uma lâmina de metal e depois de vidro. Interessava ao artista verificar o processo que se desencadearia a partir das propriedades que desconhecia a respeito da matéria utilizada. A surpresa foi descobrir que, com o decorrer do tempo, o cubo de alcatrão deu lugar a uma esfera, apontando se tratar de um material com características específicas, pelo fato de estabilizar sua geometria com um movimento de conformação bastante particular. O alcatrão foi também empregado em “For what's remained, it's a matter of time”, que, a exemplo do procedimento fotográfico em “Waiting room” e “Land line #7”, mostra os quatro tempos de uma esfera desse material junto a um bloco de gelo que se derrete. No conjunto, os trabalhos da Ucrânia – diga-se, realizados quando do pleno alvorecer da intervenção militar russa no país – se configuram como proposições que revelam o estatuto de um pensamento escultórico que não é estático nem simultâneo, mas transitivo e sucessivo, concatenado por espaços-tempos determinados pelo movimento que os materiais realizam em uma performatividade escultórica contida em seus próprios espaços-tempos. POÉTICA DO INSTÁVEL E ESTADO DE SUSPENSÃO Desde sua gênese, a produção de Túlio Pinto se dá como a elaboração material de uma ideia. Ou seja, de algo que mentalmente já tem seu dado de existência conceitual e que, então levado ao espaço, converte-se em manifestação da ideia enquanto matéria. Trata-se, assim, da prática de um pensamento que se realiza em projeção.  Inicialmente, isso se deu de um modo um tanto cartesiano, binário até, guiado por um esforço fadado ao fracasso: a tentativa de conduzir e dominar totalmente os possíveis riscos e conseqüências oferecidos por seus projetos. “Trajetórias ortogonais” é emblemático nesse sentido. Apresentado em ocasiões como uma individual, em 2009, no Goethe-Institut de Porto Alegre, o trabalho é composto por uma série de cubos de madeira (15x15cm cada) alinhados e enfileirados junto a uma parede, até se projetarem no espaço formando um “L”. O conjunto se mantém estável e sustentado por conta do peso exercido por alguns blocos de concreto (130x30x15cm cada) verticalmente inclinados, apoiados uns nos outros, e pendendo para um lado. Uma vez assim arranjados, os blocos exercem força juntos às fileiras de cubos, uma delas pressionada à parede; e a outra parecendo levitar no espaço por conta do sistema de tensão instaurado.  “Trajetórias ortogonais” se tornaria bastante significativo para a produção posterior de Túlio Pinto somente pelo fato de oferecer uma síntese conceitual e formal que logo se desdobraria: a construção de um conjunto escultórico arranjado conforme um mecanismo em equilíbrio de forças no espaço gravitacional, aspecto que perpassará depois a maior parte de suas obras.  Ocorre que o trabalho apontou outras questões ao artista por ter respondido de uma maneira inesperada, escapando a seu esforço inicial de condução e controle. Ao longo do período expositivo, a estrutura desabou algumas vezes. Na primeira, Túlio Pinto chegou a considerar a queda como atestado de que a proposta havia sido malsucedida. No decorrer das outras quedas, foi levado a entender que esta possibilidade – o desabar, o tombo, o desarranjo, o colapso; bem como a instabilidade e o risco em si – revelava, na verdade, particularidades intrínsecas ao seu trabalho, apontado para uma possível singularidade. Afinal, é um tipo de escultura efêmera que não sacraliza o objeto, podendo inclusive ser remontada, e que tira sua potência da própria inconstância dos materiais e da impermanência da estrutura, desde que se aceite que ambas podem reagir de diferentes modos conforme a circunstância. Comenta Túlio Pinto: “Entendi que meu trabalho era isso, a poesia era essa, e que ela vinha do fato de eu lidar com o limite. Isso foi superimportante no sentido de eu entender o meu trabalho. Não abro mão do aspecto formal, não é isso. Mas se você está exigindo do material e lidando com limite, fronteira e borda, tem que ter tolerância e flexibilidade. A partir desse entendimento, as coisas começaram a engrenar no trabalho”. No caso da montagem no Goethe-Institut de Porto Alegre, “Trajetórias ortogonais” teve suas quedas registradas fotograficamente, e estas imagens documentais, que oferecem um testemunho da condição instável do conjunto escultórico quando levado à referida situação de limite, foram incorporadas ao projeto, sendo expostas na parede junto ao trabalho. E o que dizer a respeito do movimento? Além da atraente aparência formal do arranjo ali estruturado, um dos aspectos mais sedutores do trabalho é a situação (ou tentativa) de anulação das forças capazes de causar o movimento de queda, o qual Túlio Pinto tenta cessar, mesmo que provisoriamente, ao oferecer estabilidade ao conjunto manejando as tensões que se escondem em um aparente equilíbrio. Em uma de suas mais relevantes e repercutidas intervenções críticas e teóricas, o livro “Caminhos da escultura moderna”, Rosalind Krauss argumenta que a passagem para a escultura contemporânea é pautada por cruzamentos espaço-temporais materializados em arranjos formais, sendo a experiência do observador situada em uma dimensão não só no espaço, mas também no tempo. “Somos forçados, cada vez mais, a falar de tempo” , escreve a crítica e teórica norte-americana em seu livro de 1977, acrescentando que “(...) mesmo em uma arte espacial, não é possível separar espaço e tempo para fins de análise. Toda e qualquer organização espacial traz no seu bojo uma afirmação implícita da natureza da experiência temporal” .  No caso de trabalhos como os de Túlio Pinto, a assertiva de Krauss permite compreender um pensamento e um fazer escultóricos que se baseiam na tensão entre repouso e movimento, entre tempo capturado e a passagem do tempo, pois se pode dizer, tomando-se suas palavras, que é “dessa tensão (...) que provém seu enorme poder expressivo” . É o que passa a ser adensado em “Duas grandezas”, instalação apresentada em 2009, na Galeria Iberê Camargo da Usina do Gasômetro, em Porto Alegre. Mais do que uma instalação, na verdade seria melhor compreendê-la como uma intervenção voltada a um espaço específico e determinado (o site-specific). A situação ali instaurada com o cabo de aço esticado que percorre a sala – uma ponta está conectada a um tecido preso à parede e esticado ao limite, e a outra ponta sustenta uma lâmina de aço de 130kg inclinada ao chão – está a serviço de um estado de suspensão que se constrói (e se estabiliza) a partir de forças em confronto, e que se igualam. 

CORPO ESCULPIDO E EM DESLOCAMENTO     Ao serem revisitados, “Trajetórias ortogonais” e “Duas grandezas” podem ser vistos como dois dos trabalhos fundadores da fundamentação conceitual-poética de Túlio Pinto, oferecendo uma síntese da produção que o artista encaminharia: a interrupção de uma queda por conta de uma tensão precisamente equilibrada que anula as forças de um movimento que ameaça se iniciar. Tanto é que essa espécie de “síntese do porvir”, já prenunciada ali, pode ser identificada na produção posterior de Túlio Pinto, com os trabalhos “Nadir#Escaleno” e “Nadir#Norte-Leste”, ambos de 2016. Aqui, essa reverberação ganha desdobramentos não só pela conjugação conceitual dos procedimentos e pelo encontro dos materiais que migram entre obras, mas especialmente pela entrada definitiva do corpo na ação escultórica. Portanto, o que era elemento integrante – o corpo – torna-se constitutivo.  Os dois trabalhos são decorrentes da série “Nadir”. O que agora entra em jogo é uma complexificação dos arranjos que mantêm as lâminas de vidro equilibradas. Se antes eram em pontos fixos que se prendiam as cordas, agora é o próprio corpo – o performer Diego Passos – que passa a ser explorado na tentativa de emprestar estabilidade ao conjunto. Trata-se de um corpo envolvido por um traje confeccionado também por cordas, oferecendo como imagem algo como uma comunhão entre os materiais e o corpo performático. Daí que a estruturação desse conjunto passa a se dar em uma relação de quase total dependência ao comportamento do performer. Pois mesmo manter-se estático demanda desse corpo uma ação que se concentra no investimento de uma medida exata entre força e equilíbrio. Se esses novos parâmetros estão plasmados na imagem resultante da fotoperfomance “Nadir#Escaleno”, passam a ser tensionados no limite pela performance “Nadir#Norte-Leste”. Aqui, Túlio Pinto avança nas possibilidades desenvolvidas ao longo da série ao explorar a passagem entre o ápice e o colapso. Ou melhor, a duração do que há entre um estágio e outro. Esse durante decorre do tempo em que se passa a ação performática. A apresentação realizada no Festival Mais Performance, que ocupou o Oi Futuro do Rio de Janeiro em outubro de 2016, foi registrada em vídeo. Quando as cortinas se abrem, o performer aparece agora em pé, conectado pelas cordas a duas grandes lâminas de vidro. Antes de sua aparição, vemos que as pedras – que até então apareciam em equilíbrio estático nas estruturas – ganharam movimento. Ao enfatizar a situação pendular, com as duas pedras prestes a estilhaçar os vidros a cada aproximação, o trabalho se dá enquanto uma ação configurada pela imprevisibilidade em sua duração. Ao longo dos 10 minutos marcados por um relógio, a tensão desenvolvida pela performance-escultórica cria uma espécie de apreensão no observador, que é levado a projetar conseqüências. E elas são finalmente confirmadas (ou não) pelo próprio performer: em um pequeno movimento, ele quebra com o estado de suspensão, endereçando ao desequilíbrio da estrutura o desfecho da performance, que se dá na referida passagem entre o ápice – a manutenção do equilíbrio – e o colapso – o desabar da estrutura e o estilhaçamento dos vidros. “Com essa entrada do corpo no trabalho, o corpo passa a ser a matéria do trabalho, parte da engrenagem do sistema”, comenta o artista. Foi já antes com “Transposição” (2012) que Túlio Pinto passou a desenvolver um entendimento corporal sobre as possibilidades de seu trabalho. Inicialmente, pensando o corpo não apenas como uma espécie de engrenagem, mas também compondo a própria matéria-prima. Em síntese, o projeto envolveu a transferência de 6.000 blocos de concreto da Praça da Alfândega para a Galeria Augusto Meyer da Casa de Cultura Mario Quintana, em Porto Alegre. Na ação que contou com a colaboração de participantes eventuais, o transporte foi realizado com viagens de carrinho de mão num vai-e-vem ao longo de 20 dias, entre os cerca de 500 metros que separam os dois espaços. No ambiente da praça, os blocos empilhados formavam um grande cubo. Ao serem movidos para a galeria, foram acomodados e encaixados ao chão, compondo uma superfície de concreto sobre o piso original. O aspecto formal dessa transposição aponta para o princípio primordial da escultura: a subtração e a adição de matéria.  Cumprindo as idas e vindas com o carrinho carregado de pedras, Túlio Pinto resolveu a seguir estender para o próprio corpo a noção de limite que já pautava sua produção. Pensando em como operar um trabalho de arte nesses termos, concebeu os primeiros contornos de projetos baseados em corridas e caminhadas de longo percurso que realizaria logo em sequência. Um deles foi o “CEP – corpo, espaço e percurso” (2013), no Rio Grande do Norte, e o outro “Migrações” (2013), no Uruguai.  Ambos foram produzidos em regime de residência artística móvel por meio de programas institucionais. Cada qual com suas particularidades, os projetos tinham em comum o fato de se basearem na experiência do deslocamento do estrangeiro frente a uma paisagem e um contexto que lhe são estranhos. Ao longo dos percursos, Túlio Pinto submetia-se a métodos, regras e instruções, vinculando-se assim a toda uma linhagem das vertentes e desdobramentos conceitualistas.  “CEP” e “Migrações” também envolveram a apreensão da paisagem em movimento, fornecendo a compreensão de que é o artista também que passa a ser esculpido pelo entorno e pela situação de passagem. O artista afirma: “Nesses trabalhos, o objeto é mais uma desculpa. O que de fato está sendo esculpido sou eu. Se as relações nos esculpem, posso dizer que meus projetos me esculpem”.  Túlio Pinto fez outro projeto envolvendo deslocamentos em 2015, no Phoenix Institute of Contemporary Art, desta vez deslocando-se de bicicleta. Em “Displaced four times”, valeu-se novamente de métodos, regras e instruções autoimpostas como modo de experenciar a paisagem da região de Phoenix a partir do movimento. O projeto foi desenvolvido a partir da representação da região metropolitana, estabelecendo as rotas de deslocamento na grade cartesiana de um mapa. A surpresa foi a grande escala territorial, que levou o artista a percorrer extensas distâncias entre os trajetos pedalados, como os 150 km que separam o ponto extremo a oeste e o ponto extremo a leste. Como em “CEP” e “Migrações”, “Displaced four times” se estruturou a partir da experiência da paisagem em movimento, apreensão esta que também envolveu os desenhos que Túlio Pinto produzia ainda esbaforido, ao longo de 2 minutos, no final de cada deslocamento.  Conta o artista que “esses desenhos eram sempre realizados com o corpo em estado de exaustão. Ou seja, desbalanceado, desequilibrado. Num estado de alteração dos sentidos. Nesses projetos, é como se minha paisagem interna fosse alterada pela paisagem que me recebeu. Ao mesmo tempo, tento apreender a paisagem que me alterou. Uma coisa dentro da outra”. Ao longo dos percursos nesses projetos de residência móvel em deslocamento, o artista não só produzia desenhos, mas também coletava objetos, registrava fotograficamente sua ação e a paisagem e realizava vídeos, entre outros procedimentos. Esses trabalhos tinham em comum, no momento de retorno ou ao final da realização, a necessidade de serem apresentados em forma de exposição. E aqui se chega a algumas questões disparadas pela natureza das proposições realizadas em viagens e expedições: como presentificar e compartilhar uma experiência que reside na individualidade do artista? O que expor quando a obra é algo que está entre a ideia e a realização? Como lidar com o problema da incompletude material de processos criativos que não se esgotam na realização de objetos muito menos na materialidade da forma? Como transferir a dimensão da experiência do artista em trabalhos que não se fazem totalmente presentes por conta de seu caráter imaterial? Afinal, no que consiste de fato a obra e como ela pode se dirigir aos visitantes em uma exposição? São todas essas discussões não estritas somente aos trabalhos de Túlio Pinto, mas que partem das diversas práticas artísticas contemporâneas baseadas em deslocamentos geográficos. As exposições resultantes de “CEP”, “Migrações” e “Displaced four times” foram configuradas como instalações. Os materiais coletados e produzidos ao longo dos percursos – desenhos, anotações, fotografias, vídeos, objetos – foram manejados em arranjos conceitualmente formalizados nos espaços expositivos, vinculando-se assim às já referidas arte site-specific e in-situ. Embora toda a gramática formal acionada por Túlio Pinto em suas esculturas esteja ali presente – os mecanismos, os equilíbrios e os balanceamentos de força, bem como as sugestões de tensão e limite dos materiais e da estrutura –, as instalações não podem ser vistas como a totalidade do trabalho, mas apenas como uma parte, uma etapa materializada no espaço-tempo específico da circunstância expositiva.  O movimento, e ele existe aqui também, dá-se na tentativa de capturar e presentificar uma experiência artística que se fez ao longo de um deslocamento, “em passagem”, deixando sempre algo para trás, por isto já dado como pretérito. Túlio Pinto tem um entendimento preciso: “A matéria-prima principal é a experiência. Ela está comigo e é intransferível”. O comentário fornece um entendimento sobre essas instalações, no sentido de serem melhor compreendidas como uma espécie de arqueologia visual de uma experiência artística. Complementa o artista: “É claro que há aspectos que só vão ser conhecidos se eu contar. Mas eu diria que nas instalações existem índices que o trabalho gerou de material que são suficientes para virar trabalho na cabeça de alguém, a partir de suas próprias ficções. Tudo é índice, como se fosse um jogo de quebra-cabeças”. Tal pensamento, sobre a fruição do observador enquanto tentativa de criar sentido recompondo o itinerário do artista, aproxima-se da teorização de Nicolas Bourriaud a respeito do expediente da viagem nas práticas artísticas contemporâneas. Em seu livro “Radicante – por uma estética da globalização”, o crítico francês situa a condição do “errante” e a figura do “semionauta” como elementos de uma estética do deslocamento – a constituição de uma “forma-trajeto” – acompanhados de uma ética do deslocamento – um pensamento de “tradução” . Bourriaud tem em conta diversos artistas que levam a cabo procedimentos artísticos que recorrem ao movimento em suas formas (trajetos, expedições, mapas...), iconografia (estradas, matas, desertos...) e métodos (do antropólogo, do arqueólogo, do explorador...). 

MUNDO FÍSICO CONCATENADO EM FORÇA PLÁSTICA Como já sugerido, os trabalhos de Túlio Pinto nos convidam a experenciá-los enquanto observadores que se fazem presentes, entendendo a presença física como constitutiva do campo de sentidos. Ou melhor, a presença enquanto movimento no “espaço em obra”  e como ato capaz de desencadear uma experiência estética.  O entendimento da escultura não só como objeto tridimensional que se configura como estático, mas como um experimento da ordem da espacialidade por lidar com o movimento, encontra eco no que o minimalista norte-americano Donald Judd já dizia em 1965 no seu clássico texto “Objetos específicos”: “(...) as três dimensões são principalmente um espaço para mover-se” .  Como se pode aferir, a noção de movimento figura de diversos modos no trabalho de Túlio Pinto, sempre operando um deslocamento, seja dos materiais seja dos corpos, tanto do artista como do observador. A partir desse entendimento, é como se os seus trabalhos transferissem a sedução inicial advinda do arranjo formal para o equilíbrio que encontram na tensão precisa investida na sustentação das estruturas. Nesse sentido, a ênfase que o olhar dirige à estrutura é conduzida para o sistema de forças que mantém o mecanismo estendido no limite de seu colapso. Estar entre um e outro é também se colocar em movimento. Com suas proposições experimentais que se materializam ao concatenar o mundo das leis físicas em potência plástica, Túlio Pinto confere particularidades a seu trabalho diante da produção contemporânea, por conta das articulações tensas e limítrofes entre duas dimensões: a sugestão de equilíbrio precário e a sensação de queda iminente.  Em nenhum caso anulando verdadeiramente as linhas de força que incidem sobre os objetos e os corpos, até porque essas forças estão ali trabalhando, tensionando-se, como um sistema provisoriamente resolvido, ainda que comungando do mesmo silêncio dos materiais, que são levados às fronteiras limítrofes da resistência que suportam. No que esses tensionamentos podem oferecer e sugestionar, Túlio Pinto atesta que é nos limites que podemos experimentar um fascínio singular do nosso estar no mundo.