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Jun/Ago 2019
Biombos e retratos
Por
VERONICA STIGGER

Esta exposição de Ana Prata parece se dividir em dois conjuntos de obras de dimensões e gêneros muito diversos, em alguma medida até antitéticos. Porém, se examinamos as obras com atenção, o que parecia contraditório se revela bem mais complexo. De um lado, há os 33 retratos sobre papel: pequenos, íntimos, realizados sempre sobre fundo branco, principalmente com canetinha, mas também com caneta esferográfica, pastel seco, pastel oleoso, lápis de cor, carvão e grafite. Nesta série, intitulada “Retratos da Bia”, de 2016, predomina o contorno largo e colorido, como se Ana tivesse pressa em registrar a pose da modelo à sua frente, ou como se ensaiasse voltar a desenhar como uma criança. Mais do que desenhos de observação a partir de uma mesma pessoa – Bia, que foi assistente da artista durante aquele ano –, são registros de performances domésticas e corriqueiras, como levantar os braços acima da cabeça, apoiar a mão no queixo, sentar de pernas cruzadas, fechar os olhos, prender os cabelos num rabo-de-cavalo alto etc. Antes que de artista e modelo, a relação que parece se estabelecer aí é a de diretora e atriz de um pequeno teatro, como se só fosse possível construir a personagem por meio da encenação, ao modo de Paula Rego em seu trabalho com Lila Nunes, sua amiga, assistente e modelo de predileção há décadas. Com uma diferença que me parece decisiva: enquanto a relação entre a pintora portuguesa e sua modelo se estende por décadas, o que leva a um espessamento do nexo entre encenação performática e representação pictórica, a relação entre Ana e Bia, para chegar ao tipo de figuração que aqui encontramos, necessitava de uma certa ligeireza – ou, mais exatamente, de uma certa leggerezza, ou leveza. Ana desdramatiza o que, em Paula Rego, se resolveria em propensão ao trágico.

De outro lado, estão os dois biombos de madeira, realizados recentemente: grandes, imponentes, pintados a óleo e com spray. Impõem-se no ambiente expositivo, intrometendo-se no espaço. Dado que são todos compostos por três folhas de madeira, poderiam se constituir como trípticos – mas Ana nem sempre quis assim. Apenas um dos biombos apresenta uma estrutura tripartite numa de suas faces, com uma pintura diferente para cada uma das três divisões, cada pintura produzida a partir de duas figuras dominantes — o triângulo para a primeira folha, da esquerda para a direita, e a meia-lua para as duas seguintes — que se sobrepõem a fundos monocromáticos, ou quase, num jogo de contrastes: vermelho contra rosa, preto contra cinza, verde contra azul. As composições que daí resultam lembram Volpi, não apenas pelas cores e pela organização das formas geométricas no espaço, mas também pela pincelada que não quer se esconder. Nas demais pinturas (a outra face deste mesmo biombo e as duas faces do outro biombo), Ana se vale da estrutura dobrável como se fosse um quadro único. Frente e verso apresentam pinturas discrepantes, que parecem, à primeira vista, não conversar uma com a outra — o que replica, em certa medida, a tensão estabelecida, nesta exposição, entre os próprios biombos e os retratos. A pintura no verso do biombo em que vemos os triângulos e as meias-luas organizados num padrão uniforme traz uma composição mais livre, irregular e suja, não respeitando contornos e mantendo propositalmente a tinta escorrida.

O outro biombo, por sua vez, contrapõe, de um lado, uma padronagem que evoca Matisse — não por acaso, um livro do artista achava-se sobre a mesa de trabalho de Ana quando visitei seu ateliê — àquela que é a pintura mais figurativa do conjunto dos biombos, a qual dialoga com a série de barquinhos singelos em paisagens aquáticas que vem atravessando a produção da artista, cujo principal representante talvez seja “Passeio de barco no canal” (Paul Klee), de 2013, que, como o título bem indica é uma releitura de Klee. Esta pintura não ocupa a totalidade da superfície, em contraposição ao que ocorre na outra face e no outro biombo. Centralizada, em forma de trapézio, dispõe, na folha central, os elementos que fazem dela uma marinha noturna: o barquinho, as cores fortes indicando a escuridão, um triângulo atuando como lua (mas ao mesmo tempo abrindo o quadro para um horizonte de abstração) e duas formas na parte de baixo, elipticamente triangulares, que gosto de imaginar como barbatanas de grandes tubarões a ameaçar a tranquilidade do barqueiro. Ao dobrar o biombo, a pintura se torna, nas abas laterais, puro movimento de cor.

Sobre os biombos, Ana dispôs pequenas telas; algumas com padrões abstratos, outras com figuras, como um buquê de flores à Redon ou uma onda à Hokusai. Assim, ela põe também os biombos a atuar, assumindo o papel de suporte, de falsa parede, uma parede dobrável e transportável, ou uma grande tela sobre a qual não apenas pinta como também apõe outras pinturas. Não por acaso, é como folding screen (tela dobrável) que a palavra “biombo” se traduz para o inglês.

O teatro que Ana encena nesta exposição, embora parta de um abrangente e, a um só tempo, rigoroso e inventivo repensamento da tradição do desenho e da pintura, aspira ao mambembe, ao se transformar a cada apresentação, ao se montar, desmontar e remontar a seu bel-prazer, ao incorporar os elementos do entorno (chegando às vezes ao limite do readymade) e ao fingir singeleza onde transborda complexidade. É, portanto, justamente o teatro — ou, mais precisamente, a encenação — aquilo que parece ligar o que, a princípio, poderia parecer díspar: os retratos e os biombos. Um teatro que se deixa vislumbrar em cada detalhe dos trabalhos aqui apresentados: em seus próprios processos de constituição (a relação entre artista e modelo), no diálogo com os grandes mestres (Volpi, Matisse, Klee etc.), na sobreposição das pequenas telas aos biombos (fazendo com que oscilem entre as condições de pinturas autônomas e algo como um papel de parede), e até mesmo, no modo de exposição, isto é, nos lugares que os trabalhos assumem no espaço e, por consequência, na interação com outras obras. Trata-se enfim de um teatro em que os papéis nunca estão definidos com precisão ou de uma vez por todas, podendo ser rearranjados conforme o momento.

Por fim, não podemos perder de vista que entre uma série e outra, encontra-se outro “retrato”: não mais pequeno e intimista, nem desenhado sobre papel, mas um imenso elefante — a figura por excelência do circo mambembe — pintado sobre uma tela de linho ainda maior que os biombos. De todos os retratos aqui exibidos, é o único que aparece sobre um fundo que não é neutro. O animal paira sobre uma composição geométrica que remete aos padrões encontrados nos picadeiros ou nas roupas dos saltimbancos tantas vezes representados por Picasso. É uma imagem ainda agigantada como os biombos, mas agora novamente bidimensional — uma bidimensionalidade que, porém, parece nascer justamente da projeção da pintura em estruturas tridimensionais através dos biombos. Este elefante, talvez mais exatamente uma elefanta (afinal, o adjetivo “tola” está escrito na base da tela, ao modo de legenda), parece funcionar como uma configuração alegórica não apenas das tensões que organizam esta exposição (sendo a principal delas a própria relação entre biombos e retratos, que é, em última instância, um novo modo de repropor a questão do encaixe entre figura e fundo, central na pintura moderna e contemporânea), mas também de um procedimento caro a Ana Prata, uma certa elefantíase que costuma orientar o modo como ela lida com os artistas com os quais dialoga: ao incorporar elementos e figuras de obras alheias, ela quase sempre os amplia. É o que acontece com o Klee já citado, com o Picasso de um biombo exposto na Galeria do Lago do Palácio do Catete — ou mesmo, aqui, dos biombos, tão ao gosto de Matisse: no trabalho de Ana, eles se transformam em biombos de verdade. Os biombos nos permitem perceber que a ampliação é um primeiro passo para que tais elementos tomem corpo — e, descolados da parede, fazendo-se paredes eles mesmos, numa indefinição entre ser parede ou obra, passem a existir mais claramente no espaço. Os biombos de Ana são como que prenúncios dos seres vivos que as obras a um só tempo querem ser — e sabem não ser. Situado ao fim do percurso desta exposição, o elefante, com seu corpo descomunal, suas orelhas imensas e sua tromba com vida própria, parece, não por acaso, ser mais um biombo entre biombos, um animal desdobrável e pictórico, tão afim àquele outro elefante, “imponente e frágil”, que Drummond via desmontar-se e remontar-se dia após dia.