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Out/Nov 2010
Nada Pertence
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Out/Nov 2010

Nada Pertence

No conjunto e em cada um destes novos trabalhos de Ana Prata se anuncia a possibilidade de um fenômeno, acontecimento “natural” que terá como uma de suas funções desestabilizar o ritmo das coisas – tanto da realidade quanto da natureza – ou no mínimo produzir algumas dúvidas no modo como o espectador as experimenta. Mais do que assistir a estes “eventos”, aguardamos por eles, esperamos – algo ansiosos – que eles se apresentem, se manifestem.

O mais elementar dos dilemas (forma x conteúdo) é um ponto de partida para refletirmos sobre estas obras. Em sua introdução para o roteiro de “O Ano Passado em Marienbad”, o escritor francês Alain Robbe-Grillet se pergunta: “Mas o argumento do filme já não era por si só uma encenação do real?”. Neste sentido, Ana Prata oferece uma via de mão dupla, em que tanto o real quanto suas representações são atravessados – e irremediavelmente contaminados – por uma noção de mise-en-scène que aponta não para a solução destas tensões, mas para suas ambiguidades e contradições mais profundas.

Nos textos de Grillet (e de todo o nouveau-roman), no cinema de Alain Resnais ou de Godard, diante de uma imagem icônica (no sentido semiológico do termo), o espectador tem diante de si pelo menos duas possibilidades: buscar uma relação imaginária ligada à sua memória subjetiva, ou conectar-se com a história da própria imagem, como objeto, o seu “passado” e todos os simbolismos que ele carrega. Uma opção não exclui a outra, pois se trata de uma experiência de simultaneidade (como no cinema), e que necessariamente se dá no presente, no momento mesmo em que se está frente à tela.

Grillet escreveu que a característica essencial da imagem é sua presença. Para ele, enquanto a literatura dispõe de toda uma gama de tempos gramaticais, que permitem situar os acontecimentos uns em relação aos outros, pode-se dizer que, quando se trata da imagem, os verbos estão sempre no presente.

Deste modo, o que vemos em um quadro está se passando justamente nesse momento. É a própria imagem em si que nos é dada, e não apenas uma referência a ela. Ou seja, uma experiência que pode ser de contato direto, não mediada. Ana Prata fala ainda em “manter as narrativas em aberto”, e fica evidente que para atingir este lugar algumas estratégias (pode-se usar também a palavra “método”) foram adotadas. A mais importante delas se situa no início do processo: a escolha do que pintar, em termos de figuração.

Vemos então uma pirâmide. Ou melhor, “Pirâmide” (não por acaso o título do trabalho). “Vulcão”, “Explosão”, “Fogos de Artifício”. São opções específicas da artista, mas que também podem ser entendidas como uma construção de repertório, um que se oferece livremente ao espectador – como possibilidade real de escolhas.

Neste sentido, são imagens de uso, e não apenas de contemplação. Foram feitas pela artista, mas por sua própria decisão não pertencem apenas a ela, mas a todos e qualquer um, por justamente integrarem e ativarem um vocabulário comum.

No universo desta gramática (que é necessariamente pública e coletiva) um carro é “este carro”, qualquer carro, e a um só tempo todos eles. Ou pelo menos aqueles de que nos lembramos com insistência: o carro de nossos pais na infância, o carro encontrado no meio do mato reproduzido na capa do jornal e na homepage dos sites noticiosos, os carros de “O Poderoso Chefão” e de CSI (o seriado policial cujo mote é “follow the evidence”), e todos os carros de Tarantino.

O conteúdo dessas imagens de Ana Prata são portanto indícios de algo que não está ali – ou melhor, que está apenas em parte, como sugestão, projeção ou mero sintoma. O restante, o que as complementaria em termos de signo e linguagem, não se localiza em lugar algum específico, mas em uma espécie de inconsciente coletivo – a Enciclopédia de Diderot, a grande biblioteca de Jean-Louis Schefer, a História do Cinema de Jean-Luc Godard, o Google e o You Tube.      

Sua pintura é feita de ícones esvaziados de potência (“weak signs”, no sentido estabelecido por Walter Benjamin e recentemente retomado por Boris Groys). Como as logomarcas das empresas de segurança criadas por Rodrigo Matheus, ou as melancólicas fantasias infantis de Rodrigo Bivar. Surge aqui uma contradição interessante, pois para lidar com emblemas tão comuns, tão “banais”, ela utiliza um material dos mais associados à longevidade: a tinta a óleo. Deste modo, por conseguirem se manter neste lugar de fronteira, entre dois movimentos apenas aparentemente antagônicos (sua natureza transitória e seu desejo de permanência), convocam o espectador a outras camadas de reflexão e escapam de esquemas grosseiros de interpretação. 

As obras de “Nada Pertence” carregam seu próprio passado e apontam para uma possibilidade de futuro. Fiapos de sentido se articulam entre si, narrativas e ficções que escapam entre as frestas de maneira silenciosa, e cujo único e poderoso indício é uma bruma leve que formam no espaço, espécie de sintaxe possível entre as imagens e sua relativa independência. Porém seu desejo de coerência é em relação a elas mesmas, e sua própria história. Trata-se da busca por uma ética interna – e na conquista gradativa desta autonomia reside grande parte da sua potência.

 

 

Fernando Oliva é curador, crítico de arte, professor (Faculdade de Artes Plásticas da Faap e Santa Marcelina) e integra a Comissão de Programação do 17o Festival de Arte Contemporânea Videobrasil.