MENU
Set/Nov 2020
Ritual de lo habitual
Por
ISABELLA LENZI

Em meio à incerteza e ao pessimismo do momento atual, a artista brasileira Ana Prata (Sete Lagoas, Minas Gerais, 1980) apresenta ao público uma oferenda, um universo alegre, celebrativo e bem-humorado, que permanece, ainda assim, enigmático, ambíguo e, às vezes, desconcertante.

Sem seguir os passos da maioria dos seus colegas, Ana decidiu ser pintora. Formada em grande parte à margem da faculdade de Belas Artes que cursou, desenvolveu sua linguagem em estreito diálogo com outros pintores de sua geração e da anterior, que se destacaram no Brasil, na década de 1980, dando ênfase à gestualidade e dedicando-se à pesquisa de novos materiais de pintura, ao contrário da natureza da produção predominante nos anos 60 e 70 —notadamente mais conceitual, socialmente comprometida e interessada em experimentar novas mídias.

Ana não justifica sua pintura nem o ato de pintar por meio de narrativas grandiloquentes ou discursos ativistas, o que mais uma vez é uma atitude incomum nos dias de hoje. Seu trabalho é despojado e espontâneo. A artista transita suavemente por múltiplas referências, que parecem díspares à primeira vista. A cultura visual de sua adolescência, vivida em uma banda de rock e no mundo do skate, se contamina e se mistura livremente com a História da Arte “oficial”, revelando seu fascínio pela pintura rupestre e pelas civilizações antigas, assim como pela chamada iconografia popular.

O título de sua primeira exposição individual em Madrid é também o nome do segundo álbum da banda de rock americana Jane’s Addiction, lançado em 1990. Além de relembrar o passado — e o presente — Ritual de lo habitual chama a atenção e presta homenagem ao ambiente doméstico que, nos últimos meses, todos experienciamos de forma tão intensa, dotando-o de um significado renovado. O título também sugere uma forma ritualizada de abordar a vida. Se muitos dos ritos e cultos do passado desapareceram, Ana afirma a possibilidade de celebrar o cotidiano e viver o dia a dia como um ritual, ou seja, evitando hábitos automatizados e colocando o cuidado em primeiro lugar.

Tous les jours fête sur votre tableé, que a portuguesa Lourdes Castro anuncia no “Livro de Cozinha” (1961), talvez num misto de ironia e celebração. Quase sessenta anos depois, as naturezas mortas de Ana são também um convite para um festim ou banquete dos sentidos. Produzidas sem recorrer a arranjos ou fotografias reais, suas composições nascem do imaginário da artista e são construídas durante o processo pictórico, que é, em si, além de um exercício material, um fazer mental, espiritual e ritualístico. A partir de gestos rápidos e sobreposições de tinta, surgem formas simples e esquemáticas, que remetem a rabiscos infantis.

Os desenhos, feitos a guache sobre papel, são ambíguos e escapam a leituras unívocas. Com cores quentes, fluorescentes ou metálicas, constituem um vocabulário reduzido de signos, rodeado por um contorno arredondado. Nesse limite, que pode representar a borda de uma mesa, a moldura de um espelho ou a circunferência de um rosto, diferentes elementos se repetem e se articulam, sugerindo múltiplas possibilidades: uma mesa com potes, laranjas e bananas; dois olhos, um nariz e uma boca; uma máscara de luta livre mexicana; uma folha escolar com o diagrama de uma célula; um monstro de desenho animado, etc. A dissonância entre planos, objetos e pontos de vista dá às diferentes composições um ar cubista. Esse aspecto fragmentado e um tanto fantástico é reforçado pelo fato de Ana aproximar universos distantes e, assim, evitar localizar suas cenas em um espaço-tempo preciso: a alquimia convive com a tradição ameríndia; Cosméticos do Egito Antigo, óleos, perfumes e pomadas, armazenados em preciosos potes de alabastro translúcido, confundem-se com os objetos dispostos em uma penteadeira rococó ou com a maleta de maquiagem do carnaval passado.

As pinturas a óleo, resultado da sobreposição de espessas camadas de pigmentos, constituem, ainda mais, cornucópias. São verdadeiros altares pagãos cujos limites são definidos pelas molduras que dão corpo ao tecido. As relações entre a figura e o fundo tornam-se mais complexas enquanto os limites tornam-se mais confusos. Padrões geométricos, pintados ou previamente estampados nos tecidos, remetem a uma toalha de mesa de piquenique, um vitral, uma mesa dos anos 1950, a trama de uma cesta ou muitas cerejas em uma panela. Na escuridão desse receptáculo que é a própria pintura, existe um mundo de objetos — que, por sua vez, contém outros objetos — com diferentes escalas, histórias e texturas. Um mundo que não pode ser totalmente decifrado pela visão e que convida a outras formas de percepção.

As naturezas-mortas costumam desencadear viagens no tempo e, se pensarmos nas vanitas barrocas, elas serão frequentemente interpretadas como meditações sobre a transitoriedade do tempo e a finitude da vida. No entanto, ao longo da história, o gênero admitiu uma variedade de temperaturas de cor e de humores: basta pensar no que vai de Zurbarán a Caravaggio, de Claesz a Gris, de Chardin a Cézanne ou de Morandi a Matisse. Até onde sabemos, poucas mulheres se aventuraram nestas terras nos séculos passados: Josefa de Óbidos ou Clara Peeters no século XVII, Anna Maria Punz no século XVIII, María Blanchard no início do século XX, e talvez mais algumas. Curiosamente, este é um gênero que nos transporta ao que é mais comum e até banal, e por isso nos aproxima dos costumes de nossos ancestrais remotos.

Nos poucos fragmentos de paredes que restaram das vilas romanas, encontramos, possivelmente, as primeiras naturezas mortas preservadas. Compostos por alimentos, animais e vegetais, além de objetos usados em banquetes ou para a conservação de alimentos — como pratos, potes, talheres e copos — às vezes incluíam também máscaras, dinheiro e instrumentos para sacrifícios, assim como para jogos ou para a escrita. É uma ironia do destino que — conectando com a obra de Ana —, muitas daquelas pinturas murais do século I aC, alegres e comemorativas, e ao mesmo tempo mágicas, irradiassem sobre os refeitórios e outros espaços domésticos que os romanos chamavam de xénias, presentes que os anfitriões ofereceram aos seus convidados como um sinal de hospitalidade.