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Ago 2020
Pacto Visual IV: uma conversa com Ana Prata
Por
LUISA DUARTE

Luisa Duarte: Como se deu o seu interesse inicial pelo campo da arte? Neste livro, convidamos artistas cujas trajetórias artísticas se encontram “maduras” para indicarem outros, cujos percursos ainda estejam em “formação”, digamos assim. Esse gesto torna importante escutá-la sobre como se deu o seu período inicial de encontro com o universo da arte. Que obras e artistas a influenciaram nos primeiros anos? Outras linguagens, para além do campo estrito das artes visuais, também tiveram papel ativo nesse momento inicial?

Ana Prata: Eu sempre desenhei e pintei muito na infância e na adolescência. O que eu mais gostava na escola era educação artística, fiz teatro, tive banda de rock feminista. Mas, quando fui decidir por um curso de graduação, escolhi Cências Sociais, porque eu não tinha referências de pessoas que eram artistas. Eu pensava que eu tinha que começar a estudar e virar uma pessoa “séria”. Arte, para mim, sempre esteve ligada ao lazer, à diversão, e eu tive pouco acesso à história da arte. Cursei dois anos de Ciências Sociais na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH – USP), que considero importantíssimos para a minha formação. Mesmo que breves, esses dois anos me agregaram conhecimentos e maneiras de organizar o pensamento, o respeito pelos estudos, a noção clara da minha ignorância e de quanto precisamos nos esforçar para de fato entender melhor qualquer assunto. Mas a tal da seriedade estava me deprimindo, descobri que eu poderia mudar para Artes Plásticas dentro da USP e, num impulso meio maluco, e com sorte de haver vaga, transferi o curso. Foi muito brusca e intuitiva essa mudança, tudo muito repentino. Minha família de sociólogos, que me conhecia bem, me apoiou imediatamente. Nos primeiros anos de Artes Plásticas, o mundo se abriu pra mim, foram muitas influências ao mesmo tempo. Conheci o Tiago Mesquita ainda cursando Ciências Sociais, e ele me apresentou muitos livros de história da arte, muitos livros clássicos tipo Argan e Gombrich, e a gente conversava muito, eu perguntava tudo pra ele. O Fajardo também foi um professor influente, logo no primeiro ano, suas aulas práticas quebravam padrões inconscientes de todas as aulas de arte ruins anteriores com uma eficiência incrível, a experiência dele era de quase cinquenta anos dando aula, e ele mostrava um monte de arte contemporânea que ele estava curtindo no momento, além do Duchamp, sempre uma referência importante. Ainda na faculdade, tenho que citar a Sônia Salzstein, uma intelectual muito lúcida e apaixonada pelo que faz, suas aulas eram sempre carregadas de longas digressões, me fez entender, na própria academia, que arte não é algo enrijecido, as relações são múltiplas. Em seguida, teve minha primeira viagem para Nova York, nos primeiros anos da faculdade, onde visitei os museus. Confesso que foi uma formação maluca e recortada, tipo Matisse, Manet, Wolfgang Tillmans e Volpi, tudo sendo descoberto ao mesmo tempo. Lembro a primeira vez que vi um Warhol ao vivo e tomei uma consciência clara de que aquilo era “só” uma pintura, quase chorei com essa constatação, a dimensão material das coisas para mim era muito impactante, entendi a diferença de ver as coisas ao vivo, em comparação com toda teoria que por vezes sobrecarrega as obras, passei a confiar mais nos meu sentidos. Nessa primeira viagem, lembro também de ter visto o Portal do Inferno do Rodin, e entender como aquilo era dinâmico, como me senti capturada vendo aquelas almas sólidas entrando e saindo do inferno desesperadas, presas ali para sempre. Lembro de quando vi os autorretratos do Rembrandt no Metropolitan, e tive claramente a sensação de olhar pra carne velha, carne feita de tinta, carne da cara do pintor, e ele me olhando de volta, e como aquilo era um ato de coragem dele. Les Demoiselles d’Avignon, pra mim, era uma pintura que eu ficava olhando em partes, infinitamente, e sentia que eu poderia ficar ali sem me cansar nunca, tamanha a força de cada centímetro quadrado daquilo. Minha formação foi muito europeia e estadunidense. Por sorte, tinha a arte brasileira, que desde o começo foi muito importante, e sempre entendi como um privilégio nosso ter referências como Guignard (que bom que a história da arte está cada vez mais sendo recontada e visibilizando outras perspectivas e narrativas, dentro de instituições formadoras, como universidades e museus). Enfim, eu poderia escrever por horas meus primeiros encontros com arte, tenho muitas memórias desses primeiros anos e primeiros encontros com obras específicas. Foi como se eu tomasse consciência da dimensão plástica do mundo, como se eu tivesse ganhado um sentido a mais. Na época, eu sentia que olhava pela janela do ônibus de outro jeito, sem exagero, eu estabelecia novas relações. Eu acredito que arte muda sua maneira de olhar o mundo, testemunhei em mim essa experiência, foi muito maluco, uma árvore escorada num muro era quase uma escultura pra mim. Foi bem mágico esse começo, bem romântico, tenho saudades. Eu sempre gostei de ler ficção, e de ir ao cinema, mas nesse começo foi muito estreita a relação com as artes plásticas, porque era de fato uma novidade pra mim.

LD: Ainda sobre isso que estamos chamando de formação, você faz parte de uma geração de pintores que surge em meados dos anos 2000, da qual fazem parte artistas como Bruno Dunley (1984), Lucas Arruda (1983), Marina Rheingantz (1983) e Rodrigo Bivar (1981), entre outros. Como seu deu essa troca entre vocês e quão importante foi essa interlocução para a sua obra? Essa conjunção de artistas dedicados à pintura no mesmo tempo e lugar legou um fôlego maior para que vocês prosseguissem no campo pictórico em meio a um contexto da arte contemporânea brasileira em que a aparição de jovens pintores era rarefeita?

AP: Com certeza! Eu comecei a pintar porque adorava ver pintura, porque pintava desde criança, e porque essa mídia me proporcionava uma espécie de autonomia dos meios. Bastava comprar umas tintas, pincéis e telas, baratinhos e vagabundos na época, e pintar na sala de casa. Claro que ficava muito ruim e eu jogava tudo no lixo. O Tiago me apresentou o Rodrigo Andrade e muitas outras pessoas, como a Renata Lucas, por exemplo, e aprendi muito com todos eles. Depois foi o Andrade que me apresentou Marina, Bruno, Bivar, e o Lucas veio depois. Lembro dele falar: tem um pessoal da sua idade pintando também! A gente começou a pintar sem a menor clareza de que estava “fora de moda” pintar, a gente não sabia ainda como funcionava o meio, e a gente se identificou uns com os outros por interesses comuns, é uma amizade pra vida que nós temos. A gente se retroalimentava, nossas inseguranças e delírios alcoólicos megalomaníacos, passávamos horas vendo livros. Eu acredito demais na importância do meio para um artista, especialmente na fase de formação. Foi uma sorte encontrar essas pessoas, entre muitas outras, como os pintores da Geração 80, que nos receberam com muita amizade e troca. Hoje, já não nos retroalimentamos assim, mas ainda é gostoso ver os trabalhos uns dos outros.

LD: No começo da sua trajetória, a fotografia cumpriu um papel importante no seu processo de pintura. Você tinha na imagem fotográfica uma espécie de origem, de mote, capaz de deflagrar o processo pictórico. Mas em determinado momento você entendeu que aquele não era o seu caminho. Nos fale a respeito dessa importância inicial da imagem como ponto de partida para o trabalho e o que levou à ruptura com essa dinâmica. 

AP: Bem no começo, eu pintava qualquer coisa que me vinha à cabeça, mas era ruim demais, ou pelo menos eu achava assim. Eu era exigente comigo mesma e jogava tudo no lixo. Na época, eu adorava fotógrafos como Wolfgang Tillmans, que fotografa de tudo e de vários jeitos, achava legal esse nomadismo dele, essa variação. Tinha o Richter, o Tuymans, e até o Sasnal, era uma moda dos anos 2000 pintura a partir de foto, e nossa adoração pelo Manet de certa forma casava com isso também. Então comecei a usar a fotografia como ferramenta. Mas o fato principal hoje, olhando com distância, é que eu não sabia pintar, e ter uma estrutura pré-determinada me ajudava a encarar a tela em branco. Eu estava aprendendo a usar pincéis, cores, tinta, lonas, todas as possibilidades que isso envolve. Até que um dia, acho que sete anos depois, percebi que liam meu trabalho como um discurso sobre imagem, essa transposição do lugar do excesso de imagens e seu caráter superefêmero nos dias de hoje para uma mídia que tem outro comportamento, outra natureza, que era a pintura. E eu percebi que aquilo não me interessava, não era sobre isso que eu queria falar. Até hoje morro de aflição de definir minha prática, me sinto tolhida. Às vezes vejo jovens autoproclamando seus discursos e práticas tão claramente, e me perturbo, até hoje gostaria de ser jovem o suficiente para poder estar experimentando. Mas, enfim, também existem centenas de artistas que falam isso, como eu, só no Instagram tem milhares de citações assim sobre isso, chega a ser um clichê, mas é verdade essa sensação, de não querer definir em palavras uma prática pictórica, ou artística qualquer, como música, por exemplo. Essa sensação de não me adequar àquele discurso foi uma crise importante pra mim, abandonei radicalmente aquela ferramenta, aquela muleta que era a fotografia, e me senti muito melhor depois, porque enfim eu já tinha mais confiança pra pintar qualquer coisa, inclusive uma abstração. Outro clichê, mas verdadeiro, precisei pintar todo tipo de imagem, retratos e mares, para ficar à vontade de fazer umas bolinhas na tela. Enfim, cada um com suas necessidades.

LD: Depois desse primeiro momento no qual a fotografia surgia como ponto de partida para as pinturas, a história da arte, em seus diferentes capítulos, passou a atuar como uma espécie de repertório deflagrador para as obras. Mas, como nota o artista Pedro França, em texto sobre a sua obra, esse diálogo não é norteado pelo cinismo ou pela ironia, tampouco é feito de maneira nostálgica, atravessado pela reverência. Podemos dizer que existe um acento livre, rebelde (punk?) nessa sua conversa com o que veio anteriormente? Seria importante escutá-la, então, sobre a forma singular com que você se apropria dessas “histórias” para erigir a sua poética. 

AP: Isso entrou de forma espontânea. De certa forma, todos nós que trabalhamos com arte encontramos referências anteriores às quais nosso trabalho se remete. Acredito que nada tem um ineditismo absoluto. No meu trabalho, essas referências foram ficando explícitas, porque eu de fato não me importo com isso, ou seja, não é algo que eu gostaria de esconder, trato com certa leveza isso, acho algo positivo. Adoro pintura moderna, adoro pintura popular (ou os chamados outsiders, naïf, pintura nuns quadrinhos num restaurante na Serra do Cipó etc.) e adoro desenhos de criança, me deixo afetar por esses três eixos com frequência e às vezes isso aparece no trabalho para além do meu controle, mas com meu consentimento. Acho que eu pinto o que eu gosto, meu gosto acaba sendo meu parâmetro. Como não tenho obsessão em criar uma assinatura só minha, um estilo, não me importo e gosto quando aparece.

LD: Lendo sobre a sua produção, nota-se que é comum afirmarem que uma das características da sua pintura é não se ater a um determinado estilo ou tema. Ou seja, estaríamos diante de uma produção que não teria uma espécie de fio condutor rígido que a guia de maneira constante. Isso ecoa declarações suas sobre uma abertura existente no seu modo de trabalhar que teria relação com uma espécie de processo próprio à infância, no qual as descobertas vão se dando a cada dia, sem planos ou decisões prévias. Mas eu lhe pergunto se essa aparente ausência de um programa poético rígido já não seria um tipo de programa em si mesmo. Ou seja, não estaríamos diante de um tipo de método desviante que lhe possibilitaria manter acesa essa relação de espanto e descoberta com o porvir no interior do trabalho? E, ainda, podemos deduzir que esse modo de proceder teria vínculo com uma afirmação sua na qual você diz, falando do seu processo de criação: “Prefiro a angústia de ter perdido tudo do que a de estar segura e me sentir oprimida”? 

AP: Você tem toda razão, e eu tenho dito isso, há um método. Estou cada vez mais consciente disso, e de certa forma vou aprimorando ele. Talvez isso tenha começado de forma muito espontânea ou até inconsciente, mas a repetição dos processos os torna método, com certeza. Lembro quando me dei conta disso vendo o Giacometti, nos testemunhos dos retratados fica clara a obsessão do artista em alcançar na pintura o que ele via na sua frente e a constante frustração que isso implica, gerando uma refeitura incessante que tem como resultado quase o desaparecimento da figura ao mesmo tempo que ela está reforçada, vira algo bem material, tentativa sobre tentativa. Esse processo de luta, repetido incessantemente, nos faz entender que a luta desesperada é método. Depois de vermos cem pinturas daquelas, é claro que ele sabia onde chegaria, ele lutava sabendo que ia perder, e essa é a graça. É nesse sentido que eu acho lindo dizer que arte também é fingimento, ele encena essa luta e nos entrega o resultado dela, esse fracasso exitoso, ao mesmo tempo que ele luta de verdade com essas questões, tem essa ambiguidade. Como você me citou, eu fico angustiada tendo que ficar inventando processos que parecem novos e espontâneos. Às vezes me dá um branco, uma falta de inspiração, penso que me falta um porto seguro, mas eu já tenho maturidade pra aceitar que isso é parte do processo, é como funciona, acaba dando certo.

LD: Este livro apresenta ensaios fotográficos realizados nos ateliês dos artistas aqui reunidos. Nesse sentido, gostaria de escutá-la a respeito da sua rotina no ateliê, como a mesma se dá? Podemos juntar essa questão à anterior. Se existe uma espécie de “espontaneidade” vinculada ao seu modo de trabalhar; você sabiamente afirma que sim, há algo de espontâneo, mas existe um lugar preparado para que essa espontaneidade ocorra, existem as condições de possibilidade para que ela aconteça e muito trabalho envolvido nesse processo. Penso que essa passagem pode ser um bom gancho para você falar sobre o cotidiano do ateliê. 

AP: Sim, dentro do meu método, eu preciso ir sempre pro ateliê, eu gosto de estar lá, é um prazer pra mim, e nesse cotidiano as pinturas vão se desenrolando. Tenho recentemente trabalhado em várias pinturas ao mesmo tempo, de um jeito mais fragmentado, e tem sido muito bom. Por isso mesmo preciso ir sempre, porque tenho várias coisas em andamento, é um fluxo que nunca termina, pois existem pinturas ali em diferentes estágios. As coisas acontecendo ao mesmo tempo me colocam num estado de certa bagunça, cheio de possibilidades, que me fazem ficar num estado mais “fresco” quando vou pintar, ou seja, não fico fritando ou me cansando das pinturas, cada pintura está sempre parecendo uma certa novidade pelo fato de ter muitas. Além disso, tenho consciência do enorme privilégio que é poder viver do trabalho que faço, e me esforço pra isso, tenho alegria por isso. Não me alieno.

LD: Vivemos uma época marcada pela aceleração em um mundo 24/7 e pela presença massiva da tecnologia no cotidiano. A vida on-line nos lega um mundo visto, na maior parte do tempo, através de telas. São inúmeras as consequências dessa experiência. Ao mesmo tempo que convivemos com tecnologias cada vez mais avançadas, parece que, paradoxalmente, a nossa percepção se encontra cada vez mais atrofiada. Não resta dúvida de que o olhar se torna mais impaciente, de que a nossa capacidade de prestar atenção, de nos atermos longamente tanto em determinadas tarefas quanto na fruição de algum objeto, parece a cada dia menor. Nesse sentido, se concordamos que a pintura envolve a relação com um tempo lento, dilatado, no que concerne à sua fatura, como também nos solicita uma espécie de paciência do olhar para o seu encontro, podemos pensar que existe aí a chance de cultivo de um território de resistência diante da aceleração generalizada, da crescente deterioração das nossas capacidades perceptivas? Como você se relaciona com esse contexto de aceleração e conexão em meio à rotina desconectada exigida pelo trabalho?

AP: Acho que pode ser visto como uma resistência, sim, não necessariamente ideológica, mas uma resistência na prática mesmo. Mesmo assim tem sido cada vez mais difícil desconectar. Mesmo com um trabalho superanalógico, hoje eu olho o celular muito mais, sujo ele de tinta, totalmente desnecessário olhar quando estou no ateliê, mas estamos todxs loucxs por isso. Mas, sim, a pintura é matéria, ela é um objeto, ela é física. Esse laço é muito forte, pra minha geração e pras anteriores. Eu me pergunto se isso pode estar mudando, às vezes acho que sim. Fico preocupada com isso às vezes, parece que a foto ficar boa no Instagram, ou o tema ser pertinente ou interessante na atualidade, tem bastado. Na verdade, o destino da pintura não está na minhas mãos, nem na de ninguém, então o que tiver que ser será, mas, enquanto não vejo uma pintura ao vivo, tenho dificuldade de avaliar, a não ser que eu conheça muito bem o pintor/a. O mundo virtual não me satisfaz, nem as leituras mais rasas de tema. Pintura é um anteparo com uma coisa em cima, em geral tinta, é um pano sujo, e existem infinitas maneiras de fazer isso: nesse “como” é que habita toda a graça, na minha opinião. Espero que a importância da materialidade resista na pintura, é através dela que a alma, a beleza, o pensamento crítico, a ambiguidade e as ideias encarnam.

LD: Ainda sobre a questão do tempo, em uma entrevista sua, nos deparamos com uma passagem bonita em que você fala a respeito da obra do pintor italiano Giorgio Morandi (1890-1964). Cito aqui este seu trecho: “O espaço da pintura sem dúvida foi um assunto caro ao artista, o que é cheio e vazio, o que é o ‘entre’. As cores em Morandi também são muito elaboradas, ele cria relações tonais muito delicadas; essa é outra questão que ele tratou como um mestre. Mas, para mim, o Morandi trata também do tempo. Ele dilata o tempo; é como se uma fração de segundo valesse toda uma vida, ele transforma mesmo a nossa noção de tempo – no espaço de um único suspiro uma coisa meio sagrada se expressa. Porque é muito espírito naquela matéria. Quando visitei o Museu Morandi em Bolonha anos atrás, fui tomada por uma emoção muito grande, que raras vezes me aconteceu. É uma delicadeza com que esse espírito se assenta ali, a delicadeza de uma leve poeira.” Seria interessante escutá-la a respeito dessa capacidade que a pintura tem de lidar com certas questões centrais da nossa experiência de forma muito sintética, não discursiva, não narrativa. Tendo em vista o fato de que vivemos hoje uma época em que a dimensão discursiva ganha muita ênfase no campo da arte, essa característica da pintura merece ser lembrada e pode ter algo de importante a nos dizer?

AP: Eu acredito que sim, por isso eu gosto de ver pintura. Mas também não quero parecer conservadora, acho que a sociedade humana e, consequentemente, a arte são algo dinâmico, apesar de algumas estruturas de dominação e poder serem dificílimas de serem rompidas. Em todo caso, estamos em movimento, em transformação. Talvez um dia pintura não seja tão importante, realmente não acredito, mas não sei. A arte tem seus caminhos, eu posso não gostar de alguns caminhos eventualmente, mas acho que não temos como temer os rumos, pois se trata de fluxos. Trabalho naquilo que acredito, de que gosto, e procuro me questionar, questionar certas verdades que parecem introjetadas em mim, mesmo ideias sobre pintura, como o que é bom, o que é ruim, o que pode, o que não pode, o que é chamado de radical, o que é chamado de conservador. Eu me questiono o tempo todo, experimento. A gente tem que desconfiar das coisas. Como disse na resposta anterior, acho que esse lastro forte com o aspecto material que a pintura tem é algo importante, inclusive se levarmos para outras esferas da vida, ou outros campos do conhecimento, sejamos materialistas, ao menos o suficiente para não nos perdermos no excesso de ideias, ou de mentiras. Mas eu acredito que a liberdade é a coisa mais importante em arte, então temos que evitar autoritarismos, ordens, sejam eles de qualquer lado.

LD: Estamos fazendo este livro em 2020, em meio à pandemia de Covid-19. Me parece incontornável perguntar como está sendo a repercussão desse momento na sua rotina de trabalho, no seu olhar para o mundo e para a arte. Sabemos, ainda, que a pandemia, para aqueles que podem exercer o direito de fazer quarentena, aumentou ainda mais o tempo que vivemos on-line, conectados. Uma das consequências desses períodos cada vez maiores nos relacionando com o mundo através de computadores e smartphones é justamente uma perda de vínculo com a dimensão sensível e temporal da vida. Mesmerizados pelas superfícies das telas que nunca enrugam, nunca envelhecem, nos tornamos cada vez mais indiferentes à fragilidade e à transitoriedade das coisas vivas e reais. Quando chegou a pandemia, você já estava produzindo uma série de naturezas-mortas. Essa nova série de alguma forma contém uma devoção justamente a essa dimensão mais prosaica e sensível do cotidiano, daquilo que nos cerca em ambientes domésticos, assim como evoca a relação entre cristalização e passagem do tempo, entre vida e morte. Nesse sentido, retomando a pergunta, nos fale sobre as consequências da pandemia na sua rotina, no seu olhar para o trabalho, e também sobre essa série mais recente de pinturas tendo em vista essas especulações propostas.

AP: A pandemia impactou minha rotina. Tive que sair de um ateliê de que eu gostava muito no centro de SP, eu usava ônibus pra trabalhar, e acabei mudando pra perto de casa. Fiquei três meses sem pintar e vi que demoraria ainda mais, então me mudei. Nesses três meses, desenhei muito, é bom a gente perceber que faz com os recursos que tem, eu tinha apenas uma mesa, lápis e guaches em casa, foi suficiente, vou expor agora na Travesía Cuatro, em Madri, uma parte da exposição só com guaches que fiz nesse período. Agora estou adaptada ao novo esquema, estou pintando numa sala menor, outra distribuição do ambiente, mas está bom, tem um sol no ateliê que não tem no meu apartamento. Nesse período, percebi o quanto meu trabalho me aterra, eu não sei meditar, rezar, essas coisas, mas pintar me coloca num estado menos ansioso, ficou claro isso pra mim. Sobre as naturezas-mortas, é engraçado, porque elas se relacionam com o que estamos vivendo, temos que buscar força na nossa própria rotina, nos nossos rituais habituais, mas eu já vinha fazendo elas. Acho que tem aí uma forma de respondermos às adversidades, colapsos, e de certa forma já estamos vivenciando isso no Brasil no mínimo desde 2016, naquele episódio chocante que foi o golpe, e como ele se deu. Devo estar buscando meu modo de responder, pode parecer ingênuo à primeira vista, talvez seja, mas pode ser ingênuo acreditar que existe uma resposta certa também. Diante de um espectro apocalíptico, arte nas suas formas mais variadas se faz importante, por razões que não são fáceis de serem explicadas. Mas o fato é que, diante de uma ideia de fim, a arte responde a uma necessidade de busca de sentidos, de ressignificação.

LD: Por fim, seria importante escutá-la a respeito do trabalho da Patricia Leite, artista que indicou você para este livro. Existem pontos de contato entre as suas produções? Quais são esses pontos? Como se dá a interlocução de vocês?

AP: Acho que existem pontos de contato, sim, sobretudo uma espécie de temperamento. O trabalho da Patricia me transmite um frescor, é uma pintura que mexe com nossos ânimos, evoca memórias coletivas e pessoais, traz uma alegria simples, genuína, direta, que temos com o mundo, como a alegria de ver uma pequena forma num grande fundo intenso e monocromático. Eu acho que meu trabalho também busca esse tipo de caminho, apesar das nossas diferenças, principalmente diferenças na fatura. Gosto muito da Patricia e temos planos de fazermos umas “brincadeiras” juntas, umas proposições comuns para pintar. Tomara que role.