MENU
Outubro 2021
Dudi-boogie-woogie
Por
NUNO RAMOS

Quando minha geração chegou, Dudi já estava lá. No gosto pela fatura, em certo amor pela confusão e pela perda de rumo, na admiração pouco hierárquica por quase tudo o que veio antes, no inevitável desenvolvimento do trabalho em séries independentes. Ainda mais do que isto – numa qualidade física, misteriosa, que só o acúmulo de minutos, o tempo depositado sobre uma obra ou um conjunto delas, sabe mostrar. Pois há uma auto-suficiência que este fazer e esta demora oferecem, e que acaba prevalecendo sobre o projeto. O que há de muito intenso na trajetória de Dudi é justamente esta auto-suficiência, este andar de lado, pelas bordas, visitando a ansiedade de sua época com uma ansiedade ainda maior, mas para dentro, modesta e reclusa.

O que não afasta uma capacidade inversa, de resposta às proposições do mundo, um enorme sim ao que bate à porta, num isolamento que o tempo todo (e ainda agora) se deixa pegar. Para que isso funcione, o mais importante talvez seja uma consciência aguda do próprio tamanho e posição – do próprio endereço. Quem visitou a casa dos Maia Rosa no bairro em Santo Amaro, em São Paulo, logo percebe isso. É difícil imaginar que o trabalho se fizesse desde outro lugar. É lá que ele dura e dura e, enquanto isso acontecer, bem, não há muito do que se queixar. Podem pedir de mim o que quiserem – eu tenho tempo. O tempo que meu trabalho me dá. 

Claro que este percurso se arquitetou em conjuntos de trabalhos independentes, com grande diversidade estilística, e que se fizeram lá fora, no mundo. Talvez o mais famoso deles seja o grupo de pinturas (ou não-pinturas) em fibra de vidro. Executadas por trás, rápidas em seu processo de fatura, parecem, de fato, o avesso da duração meio sem fim da pintura a óleo, que lhe serve de contra-modelo. Mesmo aqui (embora a brevidade da fatura de cada trabalho possa confundir meu argumento), acho que há uma resposta em labirinto – neste caso, às demandas expressivas dos anos 80 e 90. Diante delas, Dudi batalhou para se tornar progressivamente superficial. A alegria epidérmica de tantos destes trabalhos vem da resposta invertida ao zeitgeist que lhe coube. Elas são, de alguma forma, réplicas à rebours do caudaloso rio expressivo que bateu à sua porta. É assim que funciona – cada trabalho (as aquarelas recentes, por exemplo) vai oferecendo um lugar singular, dobrado sobre si mesmo, mas também ligado, conectado, responsivo ao que acontece lá fora, num tempo interior que nunca perde a cronologia.

De fato, muito tempo passou entre o primeiro Lego que Dudi produziu e este conjunto que aparece agora. Despretensiosos, casuais, para mim são pequenas obras-primas, ambiciosas em sua infância profunda e particular. A grade construtiva, o Broadway Boogie-Woogie de fundo, com suas pinceladas-tijolinhos, parece ter atravessado a porta e partido para o mundo. Mas não como arte aplicada e sim num lugar aonde dura e dura, se faz e refaz, se monta e desmonta. Como em toda brincadeira, a oração principal aqui é: Vamos fazer de novo? Este de novo, esta pulsão freudiana inexplicável que toda brincadeira de alguma forma apazigua e des-patologiza, é a raiz da leveza, da alegria e potência deste conjunto. 

Pois, sem prejuízo da precisão e riqueza de cada trabalho, parecem prontos para ser desmontados e começar uma vez mais - afinal, são Legos. O tempo do fazer e da fatura, que mencionei no início, vira aqui a promessa de uma nova montagem, como se o trabalho agora brincasse com sua própria duração. A ironia é que Dudi faça isto diante do caroço linguístico da modernidade (Mondrian, Van Doesburg, construtivismo russo). Esta memória é o capital, digamos, a sério de que este jogo se alimenta. O resultado é uma espécie de fragilidade constitutiva que parecem emanar – são ortogonais? Podem ficar tortos? Estão prontos? São mesmo brinquedos? Ficam no chão? Melhor não? Na parede? 

Há cor verdadeira neles, há modulação verdadeira, mas tudo numa espécie de réplica, de segundo turno, e aqui encontramos um traço estilístico central de todo o trabalho. Pois esta potência secundária, de alguma forma miniaturizada, é o segredo de fundo de tanta coisa que Dudi produziu. Repare que o mundo industrial destes Legos (esta super-hiper-multinacional dinamarquesa do brinquedo, só comparável a alguns personagens da Disney ou ao ursinho Bear) foi discretamente refeito. Dudi repintou tijolinhos, colou fita adesiva sobre eles e até mesmo fundiu em fibra, com perfeição, alguns elementos de que precisava. Há, portanto, certa pátina pessoal de fatura que, se não apaga o elemento neutro, fantasmático, industrial, confrontando-o, reage com sutileza a ele, modulando-o em alguma medida. Um pouco como Robinson Crusoé, reinventa-o em sua ilha.

Estes brinquedos a sério, estes mistos de Mondrian com Willys de Castro, este homo ludens, esta mordida que não é mordida, este saber que não é de verdade, mas sendo, esta confusão sem confundir, este paradoxo de Epimenides, este país de Cretenses, este tanto faz, este que bom que o tempo passou, este refugo construtivo, este make it yourself, este todo homem é um artista, este qualquer um pode fazer um sozinho, esta lembrancinha de festa infantil, este domínio de todos os elementos da linguagem, esta proporção entre o que me pedem e o que consigo entregar, este local geométrico aonde ser novo e ser velho, ser enorme e ser pequeno, coincidem – são estas as questões destes trabalhos, cutucando-se à nossa frente. 

Num momento em que o país parece ter perdido toda capacidade de proporção, relação ou regra de três, num enlouquecimento progressivo que afetou a própria mensuração – dos valores, das alianças, dos símbolos, da linguagem –, prestem atenção nestes trabalhos. Uma frágil ordem emana deles, um desejo de montar os pedaços de novo, e ainda uma vez. De seu canto no mundo, de seu pequeno castelo no bairro de Santo Amaro, é esta a resposta de Dudi ao nosso pesadelo. 

Se um dia isso tudo passar, mas a terra ficar tão devastada que a gente não reconheça mais nada, quem sabe a gente começa por eles.

Nuno Ramos